Reuniu-se em Alexandria, por iniciativa estrita de uma entidade da intelligentsia, a Academia da Latinidade, um conjunto de pensadores ocidentais e islâmicos para a crítica do diálogo internacional transformado em retórica política, senão em impostura assumida diante da brutalidade do conflito pós-queda das torres em Manhattam. Não se trata mais de invocar-se o lugar comum do choque e seus vaticínios acadêmicos, mas do entendimento do que seja, de fato, a partir de uma “civilização do medo”, o começo de um universo hegemônico, mal raiado o novo milênio. Não se cogita mais também de discutir o cenário do mundo unipolar, como mera exasperação dos colonialismos, ou das dominações conhecidas, ou repetir os paralelos entre impérios, ao fio todo da história, como a conhecemos até hoje. É escapar a realidade do que agora começa, recorrer-se a comparação entre Roma e Washington ou acreditar que o poder universal como o que constrói o Salão Oval tende a se afrouxar, necessariamente, a largo prazo, e exaurir-se pela própria inércia.
Estamos na aurora de um mundo cujo apuro tecnológico, logística de controles sociais, portento de informação, esvaziamento do imaginário, pode se permitir uma vigência indefinida. Não é sem razão que o disparo da cruzada ocidental coincidiu, com a criação na Casa Branca de um departamento explícito de “cibernética social”, absorvendo as melhores técnicas da informática, brotadas do Vale do Silício, na Califórnia de todas as antecipações. É o que exige o novo zoológico humano e o padrão comportamental do mundo dos simulacros, a suceder à velha e nostálgica sociedade de massas, como a amestrou o meio do século XX. Em Alexandria, pensadores como Jean Baudrillard, Alain Touraine, Gianni Vattimo, Suzan Buck-Morss, Edgar Morin, e os brasileiros Hélio Jaguaribe, Cristovam Buarque ou Sérgio Rouanet, encontraram intelectuais de ponta islâmicos para, exatamente, apontar ao perigo da hegemonia instalada, tão para além dos velórios ideológicos do “fim da história”, ou do “choque das civilizações”.
Alain Touraine pôde, com razão, mostrar que, por uma vez, o Ocidente está de fato em perigo de morte e o alvo sem apelo é o da própria subjetividade coletiva, ferida que está a alma dos povos no seu essencial: a percepção ainda da diferença por onde se fazem as pessoas e os exercícios ainda conscientes da liberdade. A hegemonia começa por esta demolição da cabeça, exposta a toda uma nova etapa do risco apontado por MacLuhan, ainda, há quase meio século, e na fase de se ver apenas o veículo, ou seja, a ditadura mediática, como indutora à homogeneização do conteúdo do nosso imaginário. Hoje é a representação mesma desta realidade que se troca no artefato, trazido à opinião pública; no que se cancela, se interdita ou se refaz, na sapientíssima ração do imaginário que acompanha ou mesmo precede a hegemonia objetiva. Mais que risco específico da cultura muçulmana, - que ainda percebeu a tempo a sua identidade como golpeada pela terraplanagem da modernização - e o de todo o nosso mundo interior - exposto à nova e sutilíssima dominação, que aparta a realidade em confisco subliminar. Pensamos, como nosso, o que já vem de uma programação sonâmbula do desejo; do que se lhe permita, tanto quanto o moderno tomou o lugar do autêntico, e o dito progresso condicionou os espaços de uma velha e selvagem liberdade.
Alexandria quis articular, sobretudo, na insistência dos pensadores islâmicos o que pudesse ser ainda a voz dos intelectuais diante das políticas de poder, que expropriam e refazem hoje - como salientou Baudrillard - o próprio evento - em benefício do que lhe permite a informação e o simulacro vendido à opinião pública como sucedâneo da realidade, dócil à sua conveniente edição. Os dias da reunião na Biblioteca-símbolo, foram também os das primeiras publicações, por direito ganho no Judiciário americano, das fotografias dos caixões dos soldados mortos no Iraque, alinhados nos aviões de retorno para os funerais. Os porta-vozes do governo justificavam o cancelamento desta realidade, até agora, na imprensa mundial, argumentando que estes fatos - e seu porte - passavam do segredo dos campos de batalha ao estrito âmbito do mundo particular das famílias.
A Conferência de Alexandria, avançando a agenda da Academia da Latinidade, definiu um quadro de prognósticos para o futuro imediato, fugindo ao horizonte banalizado das radicalizações do diálogo das culturas, e à busca do que poderia ser, ainda, uma visão crítica, frente às turbulências adicionadas à hegemonia em preparo. Estas se aceleram dramaticamente na seqüência da verdadeira “guerra civil” no Iraque, um ano após a invasão.
Atente-se também à ameaça à União Européia, a partir da Inglaterra, vinda da proposta Blair, de devolução a plebiscitos nacionais da sua Constituição ora aprovada, adiando sine die a sua vigência. Ou à nova perspectiva de satelitização americana do Velho Continente, através da entrada dos países do Leste, todos hoje vinculados a um anel de dependência com os Estados Unidos, por sobre o eixo Paris-Berlim, onde se assentou todo o começo e a verdadeira força autônoma do outro pólo do Ocidente.
A nação chave do mundo, a 4 de novembro próximo nas eleições presidenciais, vota um verdadeiro plebiscito entre um mundo ainda resistente à cibernética social instalado no Salão Oval, e a modelização, que começa, no Iraque, e não esconde o efeito dominó que pretende, na democracia pasteurizada a se implantar, até o Paquistão, no seu primeiro lance. Em tempo, o Iraque abriu a fenda da guerra civil, frente aos meros jogos de progressão monitorizada da ordem hegemônica. Sunitas e xiitas ao se associarem contra o Consulado americano, confiam, ainda, na expectativa da sabedoria política da América de fundo, de repetir o exit do Vietnã. Retiradas a tempo, e recuos históricos são privilégios de poderes ainda submetidos à visão do outro e ao pluralismo político. A hegemonia não tem retrovisores, mas tão só a crença no aperfeiçoamento indefinido de sua logística, tanto quanto, nosso, não é mais o mundo da história, mas do simulacro que se edita em seu lugar. Sem vestígio, e indolor.
Jornal do Commercio (RJ) 14/5/2004