As comemorações dos 40 anos da morte de Santiago Dantas tiveram o tom de um novo percutir na memória nacional de nossas personalidades canônicas ou exemplares. Não se trata só de quem exprimiu o sentido do seu tempo, ou mesmo o antecipou. Sentem os seus contemporâneos que o sinete de um exercício limite, da inteligência sem concessões, nem desculpas, nem arrogância. O desempenho tornava-se uma proeza, por si mesmo, para o ator, desengastado de platéia. Deparamos, talvez, um desses casos extremos de uma moral de performance a ter, no fundo, um único e exatíssimo expectador. Não calha o lugar comum, de ver a biografia de Santiago como a obra de arte, dos clássicos chavões em que falamos, com licença quase promíscua, da aparição entre nós, de figuras Renascentistas.
Mal entrado no seu meio século de vida, fechava o recado em dois textos definitivos, como apólogos para a pós-modernidade. Desconstruiu Rui Barbosa em dois momentos, como no seu ''Quixote'', inverteu o donaire pe la arremetida à perfeição, em quase fastio. Ou dentro daquele ''excesso de consciência'', que prescinde de explicações e exigia dos erros ou descuidos à sua volta que, sobretudo, lhe poupassem de desculpas. Nem dureza, nem jovialidade do facilitário proverbial da nossa sub-cultura, mas tino e gula neste universo da inquirição, pobre no seu entorno imediato, mas que supria pelo botim de volta, das livrarias ou galerias de arte de Nova York ou Paris. O atletismo todo firmava a fatura desta vida devorada pelo apuro crítico, para pôr-se sempre à prova, ou fundar o momento de mudança quando foi à coisa pública, forçando o que podia a sua época.
Não se logra escapar, finalmente, da marca apolínea que Santiago deu de maneira implacável ao seu protagonismo, nesta fruição olímpica de uma vida sem cortes, mas cujo primeiro enredo fazia-se para o próprio ator. Esta paixão pela performance-limite iria diverti-lo, no ler com pompa um discurso para aceitação de cátedra em Varsóvia, sem uma palavra escrita no papel às suas mãos, ou a negar-se a falar inglês com Kennedy, não obstante o seu amplo comando do idioma, intolerável que lhe seria qualquer deslize de frase ou pronúncia.
Santiago entregou-se, no tempo só da sua maturação interior, e sem retorno, à batons rompus ao processo político do exato meio século. Penetrado pela guinada de Vargas, viveu a tragédia do populismo, bem à frente do inimigo e dos generais. Castelo Branco, advertido por Roberto Campos, arquivou o processo de cassação trazido à sua mesa, evitando um ridículo póstumo do 31 de março. Proeza cada vez maior, a de Santiago, escapava a estreiteza do palco tanto quanto se exauria quase em metrônomo, todo um ciclo de sua virtualidade criadora. Guardamos, todos, as vogais de Santiago, cunhadas à épura da cabeça, na volúpia da frase latina. Deu conta, também, para toda a sua geração, do intento tão clássico quanto recolhido do intelectual puro, de atingir o nervo do seu tempo pelo artigo, na crença, de então, na onipotência do periódico. Comprou o Jornal do Commercio e deu vida, tão opulenta como efêmera, no que durasse este nosso momento, à famosa página 11, de reflexão sobre o brasileiro, portado pelo nacionalismo e o desenvolvimento.
O que começava naquela folha passaria necessariamente ao protagonismo político desta ascese final de Santiago, de cabeça feita para a entrada no PTB, no preciso meio século. Pressentia a cunha da mudança, rompida entre os partidaços da clientela, das carpideiras do moralismo das classes médias e do udenismo da República Velha. Entregou-se com o verdadeiro regalo do pensador apolíneo com exatidão da consciência, despojada e cruel, ao discurso político das ''mãos sujas'' de Sartre. Fez a peregrinação retumbante a São Borja, tornou-se mola do salto do Varguismo para articular na sua dialética uma esquerda positiva, já para a fase das perplexidades de um governo Jango, acossado pelos radicalismos do cunhado, às vésperas já da manopla militar.
Num primeiro momento, um Parlamentarismo fora a ponte pênsil, ainda, para a manutenção de um Estado de Direito, e a toma de consciência das contradições do pós-juscelinismo. Nele Santiago migra de Ministro do Exterior, ao da Fazenda, e não alcança a confirmação como primeiro-ministro. Nada talvez, como paroxismo da obra inacabada, fique como o melhor monumento à porfia desta lucidez, como recado à história do que poderia ter sido. É um janguismo, afinal, como conchavo no pequeno maquiavelismo da esquerda negativa que se troca, pelo vértice de um Brasil como opção, que Santiago deixou desertado, pela perda do voto de confiança parlamentar. Exilou-se ali, o país da sua lucidez desapiedada.
Quatro décadas de distância só apuram os ácidos desta memória, em que Santiago ganha a sua desmesura incômoda que já comporta a nossa história. O que aconteceria se tivéssemos tido no eixo do poder, em 62, o asceta purgado dos luxos fáceis do mando, na vigília de uma razão armada contra todas as utopias das tolerâncias e rupturas perpétuas da nossa história morna?
Jornal do Brasil (RJ) 13/10/2004