Se é verdade que a democracia, como observara atiladamente o senador Milton Campos, “começa no reino da consciência”, seu fortalecimento, contudo, pressupõe uma conduta cotidiana da qual deve brotar a seiva que a robustece e propicia o seu ininterrupto aperfeiçoamento. Isso exige tanto do conjunto dos cidadãos quanto dos que transitoriamente estão investidos da titularidade do poder o imprescindível concurso para que o nosso país venha consolidar a República, enquanto res publica , convertendo-a em sinônimo de cidadania.
Infelizmente, contata-se aqui e alhures, mormente em nosso entorno sul-americano, quer nas pesquisas de opinião quer nas manifestações dos veículos de comunicação social, o desconforto com o desempenho individual e coletivo dos atores públicos.
Esse sentimento, misto de atonia e indignação da sociedade, corolário de acentuado déficit de governabilidade, em grande parte se deve atribuir à falta das denominadas reformas políticas. Sem elas, o nosso sistema eleitoral, o estabelecimento partidário, o regime político, o Estado Federal e a própria República podem ser aqui incluídos entre as “promessas não cumpridas pela democracia”, para usar a expressão de Norberto Bobbio, e das quais fazem parte a persistência das oligarquias, a supremacia dos interesses sobre a representação política, a presença de poderes invisíveis e uma ainda insuficiente formação política dos cidadãos.
A tudo isso se enlaçam as candentes questões de legalidade e de legitimidade democráticas, que hoje oferecem completeza à definição das modernas democracias.
Diferentemente do que ocorre com a legalidade, cuja situação se positiva com a posse e, conseqüentemente, não se altera, a legitimidade pode se modificar no curso do mandato. A legalidade da origem de todo o poder político é apenas o lado formal de sua juridicidade. O aspecto funcional de seu desempenho está, cada vez mais, condicionado por seu exercício. Nessas condições, já não será legítimo o poder apenas revestido dos critérios da legalidade, mas aquele em que haja coincidência com o atributo de sua aceitação pela maioria. Ou seja: o poder será tão mais legítimo quanto mais o seu exercício corresponder ao que os teóricos denominam de “imagem social do poder”, vale dizer, à expectativa que dele tenha a sociedade como seu todo.
Convém considerar igualmente que a estrutura e o funcionamento dos mecanismos de coesão e solidariedade social já não se assentam apenas na capacidade da sociedade de organizar, gerir e administrar os seus conflitos, segundo padrões próprios de cada país. Questões como a proteção das minorias, a garantia da diversidade étnica, cultural e religiosa, a efetiva tutela dos direitos humanos fundamentais, assim como a liberdade, a igualdade de oportunidades e a educação, já não são mais padrões nacionais diferenciados; ao contrário, em nossos dias, constituem-se a partir de um conjunto de compromissos jurídicos internacionais cada vez mais amplos e universalizados.
Fundamental, destarte, que a sociedade brasileira, nesse transe que perpassa todo o país, possa refletir conjuntamente sobre mecanismos que melhorem nossas condutas democráticas e renovem as nossas instituições.
Enfim, não se deve ver a crise como sinal de retrocesso ou decadência. A história das nações, disse Tancredo Neves na campanha presidencial, é “a história das suas crises”. É oportuno, assim, retirar lições que conduzam a respostas aos desafios políticos e institucionais de consolidar a racionalidade econômica e de ampliar nossa coesão e solidariedade sociais.
A adversidade não deve inibir, portanto, nossa capacidade de aprofundar as reformas do Estado brasileiro - sem pressa, mas sem pausa - na desafiadora tarefa de melhorar o que Bobbio denominou “la bruta politica”.
O Globo (Rio de Janeiro) 29/09/2005