A quem importa, de saída, o escândalo Waldomiro? Na verdade, 47% do País, segundo os jornais, nem tomaram conhecimento, e 26% reconheceram estar mal informados, mesmo quando quer um afastamento de Dirceu. O escândalo importa a 26%, de todo o Brasil de sempre. Há todo o Brasil de sempre, entranhado ainda num sistema e numa estrutura de que a corrupção é a segunda natureza. Não será o último, o auxiliar pestiferado, peça de uma engrenagem clássica do subdesenvolvimento que privatiza a função pública; faz do cargo a oportunidade que a vida econômica lhe negou, da passagem pelo poder, a condição de enriquecimento instantâneo dos ditos espertos.
É esta a verdadeira “herança maldita” de quem entra no Planalto. Não o programa do antecessor, mas a inércia da máquina, que adere, reata as combinazzioni pregressas, faz parte dos tratos mais respeitáveis de como se produz a eficiência do Governo; suas liberações de recursos; seus ganhos de concorrência até os mimos cívicos ou filantrópicos dos vencedores contumazes.
A saída do que aí está não se faz pelo “exorcismo-conformismo” do vendilhão pego em flagrante. Mas pelo ataque, de fundo, à própria estrutura que cria o bom patife. Não é outra a proposta que o Governo Lula sabe, de sua força de fé, como o dito imperativo de transformação social. Continua no impulso básico do novo Governo, mal vindo à tona diante dos anticlimaxes, ou das ditas decepções do primeiro ano dedicado a garantir o salto adiante. É o que se logra a cada dia, contra a corrente, nesta dificílima conduta fundadora a que se entregou José Dirceu. O novo passa por aí, fora das retóricas da pureza doutrinária, como de um governismo estéril, intransitivo, das maiorias excessivas.
O avanço, por menor que seja, das reformas da previdência ou dos tributos, põe em movimento uma ação histórica que desarticula a inércia e começa a atingir o status quo; deflagra a mobilização e uma nova tomada de consciência, que a acelera. A dar certo - e o elo passa por José Dirceu - o Governo cresce ao fim do mandato, em compensação decisiva à demora do arranque. O essencial agora é não perder a identificação única pela qual o País todo se sentiu Governo; foi à Palácio e pode nesta convergência dar o salto, como o PT é o partido da diferença. É este o lance que importa, no responder a escala da verdadeira expectativa do Brasil de fundo, que não se importa, como mostram as pesquisas, com a execração de Waldomiro. Mas cobra a agenda real das mudanças que detêm o gatilho da impaciência no País ainda silencioso. O castigo mesmo exemplar do assessor palaciano não a sacia, tal como a dita e redita “ruína moral” do Governo não reside nesta contaminação por velhos estigmas.
A ética em questão responde ao dever do novo e das medidas de transformação social que não se podem atrasar pela síndrome do moralismo, seus rituais, sua desmemória. Seu fruto é a nivelação de todos os Governos ao cinismo cívico, e a morte desta expectativa da virada do futuro que foi às últimas urnas. Este espetáculo crônico não é o do Brasil de Lula, tal como suas carências e sua pressa exigem a usina da cobrança e da vigília do chefe da Casa Civil. Ou da franqueza e humildade do realismo trazido por Patrus Ananias à pasta do desenvolvimento social.
A mudança não se faz da noite para o dia, mas tem o momento de concertação, de avanço de dentro, numa nova atitude nacional em que contam as mobilizações coletivas, os mutirões, até os sacrifícios na espera por um salário mínimo condizente, já que se sabe para o que se sofre, e que a meta chega, como Lula ganhou. Há, pois, um tempo para que tal se desfeche e a quebra da confiança para atingi-lo é irrecuperável. Lavar a testada no imediato cumpre um rito mas só exaspera um outro dever. O importante, nesse momento, é o Planalto não se ter deixado levar pelo escândalo, como se se pudesse paralisar o País que se reconheceu em Lula, e cobra outras proezas e outros trabalhos para dar conta do a que veio o presidente.
Não há na história contemporânea outro feito, em que a força de uma eleição popular e direta tenha, de fato, trazido ao centro do poder a expressão de uma identidade nossa renovada, gerando outro reconhecimento coletivo e outra cobrança histórica. Não há que insistir no quanto, ao pagar todos os preços da estabilização econômica, para resistir às hegemonias de mercado, o Governo já assinalou lá fora o que possa ser uma alternativa, como uma esquerda em processo, por sobre os socialismos tradicionais exaustos no Primeiro Mundo.
Haverá sempre Waldomiros no caminho do regime que se descarta. Mas são os Dirceus que asseguram o realismo e objetividade do que há a fazer logo, e enquanto é tempo. Se foi inédita a vitória de Lula, imprevisível será a decepção do Brasil com o fracasso do Governo diferente e da esperança selvagem que só nele se aninhou.
Jornal do Commercio (RJ) 2/4/2004