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Réquiem para o moralismo política

 

A pesquisa da virada eleitoral de Lula nestes dias mostra mais que um abalo sazonal das esperanças da oposição voltados aos cálculos da desgraça do governo, de meados de 2005. Os novos números cravam um punhal na crença da derrota de Lula, vivida na antecipação das pajelanças do ganho tucano-pefelista no último Natal. Os percentuais não são só contundentes. Viram-se como irrespondíveis, por mais que a melhor bateria da competência oposicionista procurasse desfazer os novos prognósticos como delírio de verão. Estão aí e forçam uma reorganização das hostes anti-Lula com o ônus imprevisível de que devem, de novo, virar o jogo. E brota, de repente, um gosto antecipado de vitória no Planalto que mantém, de toda forma, a argúcia de conter a euforia, e vir de corpo inteiro ao cravo da eleição.


Talvez porque, a perder mais, os pefelistas não deixam dúvida de como a expectativa de êxito entrou em contagem regressiva. Dá-se, de barato, que Lula não leve a classe média, mas o contingente do ''outro país'', indiscutivelmente fechou questão em torno do bis no Planalto. Com ou sem o partido; com ou sem as figuras de proa; ganhando ou perdendo o governo de São Paulo. A oposição também se deu conta de que o eleitorado de fundo não se contagiou pelo moralismo de todo o sempre, na tentativa de reproduzir-se a avalanche lacerdista, que devolveria o país ao dessorado monocórdio do status quo.


Não é à falta de um programa que Lula soçobrará. Mesmo porque a sua cobrança já passa, do conteúdo, ao ritual de reclamá-lo como pede a etiqueta dos partidos ''bem''. Mais ainda, a exigi-los, em nome da mudança, vai a oposição à duplo paradoxo. Se se cobra a tranqüilidade do progresso, à conta do governo anterior, foi Lula quem a completou, sofrendo nas suas hostes, da crítica pela ortodoxia do modelo. Se o antecessor quebrou a espinha dorsal da inflação, foi exatamente o petista - reconhecerão as críticas futuras - que asseguraria uma liquidez internacional, fugindo, de vez, do lance com que o mercado externo capturava os resultados de todo nosso recomeço. Nem prospera o tucanato como garantidor do programa social, que guarda como sigla virgem, no dístico do partido. O apoio aos desmunidos passou hoje à escala aos milhões, em que o bolsa família se tornou um programa de massa.


Venceu, também, o governo a retórica que tisna de nome feio o programa assistencial, a levar o novo aos nossos mundéus, já que, antes do pobre, foi o miserável que votou no ''sapo barbudo''. Nem há como, tal como pretende o líder pefelista José Agripino, castigar o ''bolsa família'', porque não abre também a porta do emprego. Esta não é entrada de fundos do que pretenda o governo Lula, nem, pela força de consciência que mobiliza, há que vê-lo como uma política da caridade ou das muletas sociais.


O programa da urbanização mal começa, de par com a efetiva conquista de um mercado para o trabalho, no enorme canteiro de obras em que deverão se transformar as cidades brasileiras. Da rede sanitária, às estradas, à construção civil, aos logradouros públicos. Se a dita assistência sacudiu a inércia do país, o Planalto deverá plantar uma nova estrutura econômica para absorver, de vez, um potencial de trabalho, que hoje aflui as cidades em 78% de nossa população.


Vivemos o meio século, de arranco e quebra da mudança, desperta pelos ''50 em 5''. Mas o que se deve ao governo Lula é a transformação das amostras afrodisíacas do novo, pelas migalhas de seus resultados, na certeza da disseminação do êxito. É esse o movimento profundo de abalo do status quo, que irrompeu na pesquisa Census, diante das surpresas de janeiro, de um país perguntado não sobre as decepções do imediato, mas do quanto, apesar de tudo, estas não atingiram o seu futuro.


Haja água na fervura do neopessimismo das oposições, vendo o quanto o aumento do salário mínimo trará o duplo fecho de segurança à reeleição do presidente. Nem se avexe Lula - na marca do frasear de Garanhuns - de não alinhar programa na campanha de pompas, lantejoulas e breques, que venha a concorrer ao estandarte das promessa pefelo-tucanos. Não se vota no petista porque terá libreto, mas pelo que já fez. Menos pela amplidão da promessa do que pela certeza de que o ganho é para ficar. Seu eleitorado não é o das classes médias voláteis que querem mais e se abespinham, logo no olho gordo do carro do vizinho, ou do seu tênis fluorescente.


O marginal agarra o que tem, e não quer perdê-lo na volta aos governos de todo o sempre. E Lula vai a outubro não com as galas de um projeto, com o refino de todas as lupas tecnocráticas, mas por ter logrado um verdadeiro pacto social para a mudança. O que importa é o quanto as classes médias sozinhas não decidem mais da opinião pública, nem esta, na sua rede mediática, se impõe ao voto popular.


O novo é este misto de paciência, visão de conquista a prazo, e fidelidade a um inconsciente social em que não penetram os oráculos da desgraça nem as vestais da neopureza das ditas esquerdas contra o sentido efetivo, grosso, de para onde vai o seu voto. Nenhuma última esperança pode vir do tonel de horrores das CPIs. Só democratizamos o vilipêndio de todos os parceiros do velho jogo das elites brasileiras. As CPIs necessitam de réquiem rápido, antes que apodreça de vez o moralismo defunto, e mais que nunca empesteie os compadres da alegre denúncia de Roberto Jefferson. Quem mais falará do assunto após o pano rápido que porá ao bolero das denúncias, o ''deixa para lá'' que a oposição agora, com todo ímpeto, instiga e atucana?


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 08/03/2006

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 08/03/2006