A crise do dossiê Dantas testou os limites da nossa maturidade democrática. Deparamos com uma nova consciência, que torna irrevogáveis estas conquistas, e nos deixa a salvo de regressões moralistas, ou de um controle autoritário. É benéfico que o choque tenha sido percebido ao nível decisivo dos movimentos sociais, dos abaixo-assinados e das moções, libertados do conformismo das instituições. A verdadeira paz social corrompe-se por um quietismo excessivo, confundindo com uma pseudo tranqüilidade o nível de desencanto, senão de cinismo, com que um país de elite de poder pretende se manter no banho-maria do seu status quo.
Chegou ao extremo o confronto do Presidente do Supremo, não só com o Ministério da Justiça mas, sobretudo, frente ao juiz da Vara Criminal paulista, responsável, de princípio, pelo inquérito Daniel Dantas. Mas permitiu-se o acionamento das mecânicas que o arsenal democrático do país já dispõe para estes tipos de conflito. É o caso - que mereceu reconhecimento internacional - do papel do Conselho Nacional de Justiça, visando assegurar o controle do Judiciário, por fora dos seus membros e de uma eventual composição das coisas em casa e de sua permissividade corporativa. Pretendeu o Ministro Gilmar Mendes uma ação corretiva inédita pelo órgão contra o juiz De Sanctis. Mas desistiu de ir às últimas conseqüências, diante do que, como desbordo da convicção do próprio Poder Judiciário, de par com o Ministério Público, poderia atingir um conflito institucional aberto.
Todo amadurecimento democrático supõe a percepção empírica do alcance destas novas medidas, importando sempre numa escalada. Delineou-se o avanço efetivo do sistema pelo regime emergente de freios e contrapesos, de consciência adquirida e arreganho de opinião pública. Ficou como explosão inócua, e válvula de descarga de um sentimento popular, por exemplo, o pedido de impeachment do Presidente do STF pela CUT.
Cresceu o poder de resposta no quadro das instituições pelos controles de que já dispõem, impedindo que perdure, como impotente, um inconformismo com o abuso ou a omissão do poder. O saldo final dessa nossa maturação na crise é não terem mergulhado as frustrações no plano do inconformismo radical, que leva aos golpes e às quedas inesperadas do melhor dos mundos das liberdades. Uma alegada evidencia de corrupção não afasta o crime de imagem no açodamento contra a espera das sentenças, no respeito aos direitos adquiridos e às provas cabais de condenação.
O julgamento dos dossiês postos em causa pela Operação Satiagraha, na complexidade das suas inter-relações, culpabilidades reais ou presumidas, poderá entrar, inclusive, em novo anticlímax de espera. Nos ganhos objetivos, em que sempre progride a democracia para ficar, não se repetirão a tonitroância do delegado Protógenes, a exibição das algemas, e a arrogância policial, embriagada ainda pela nova desenvoltura que lhe outorgou o governo Lula. Mas continua a senha para a devassa telefônica, universal - e o trânsito frouxo entre o registro da freqüência de chamadas e o das conversações de logo vistas como suspeitas. O réquiem para um Brasil impune não se confunde com o alçapão eletrônico em que pode sucumbir o direito à intimidade, indissociável da cidadania.
Jornal do Commercio (RJ) 8/8/2008