"Tão importante como legislar é uma fiscalização vigilante da Administração, e ainda mais significativa do que a lei é a instrução e orientação em assuntos políticos que o povo pode receber de um Congresso disposto a discutir às claras os problemas nacionais."
Malgrado a enorme atualidade dessas palavras, que foram proferidas em 1884 por Woodrow Wilson, observa-se, em nosso país, que o exercício compulsivo da competência extraordinária de editar medida provisória tem provocado a interdição das funções legislativas do Congresso Nacional.
Apenas para exemplificar e em abono do verificado no Senado federal, conforme se extrai das atividades do plenário, o trancamento de pauta em face da tramitação de medida provisória não apenas tem prevalecido, como tende a aumentar. Nos últimos três anos e meio, o porcentual de sessões deliberativas ordinárias com a pauta trancada nunca foi inferior a 65%.
Em 2005 o Senado teve 113 sessões deliberativas ordinárias, e em 75 delas nada pôde votar. Em 2006, 58 sessões, de um total de 83, estiveram com a pauta trancada. Em 2007 essa relação foi de 83 em 127; em 2008, de 82 em 115; e, em 2009, no período de fevereiro a maio, houve 43 sessões deliberativas, 38 das quais com a pauta trancada, o que equivale a 88%.
É notório, pois, que o excesso de medidas provisórias transforma a prática extraordinária dessa competência normativa primária em exercício ordinário do poder de legislar.
Note-se, por oportuno, que, ressalvado o ocorrido com a Constituição de 1988, em todos os demais casos, a função de legislar pelo Executivo foi adotada sempre em períodos excepcionais da vida institucional do País, a saber: 1) Da proclamação da República (1889) até a promulgação da Constituição de 1891, que estruturou as instituições nacionais - República federativa, bicameral (com Senado eleito) e sistema presidencialista de governo; 2) no governo provisório que se instalou após a Revolução de 1930; 3) com o fechamento da Câmara dos Deputados e do Senado federal, durante o Estado Novo, decretado por Getúlio Vargas em 1937; e 4) por três vezes no regime militar - em 1964, por intermédio do Ato Institucional (AI) nº 2; com a Constituição de 1967; e em decorrência da Emenda nº 1, de 1969, editada pela Junta Militar.
A adoção do instituto jurídico da medida provisória, criado pela Constituinte 1987-88, decorreu de tosca adaptação, ao regime presidencialista vigente no País, de igual dispositivo da Constituição Parlamentarista da Itália de 1946, os chamados provvedimenti provvisori, permitidos tão somente em três casos: de segurança nacional, de calamidade pública e de normas financeiras.
Na versão brasileira, as medidas provisórias foram, contudo, bem mais permissivas do que os decretos-leis utilizados pelos sucessivos governos militares, uma vez que seu objeto sempre esteve limitado: no AI-2, à matéria relativa à segurança nacional; na Constituição de 1967, à segurança nacional e finanças públicas; e na Emenda nº 1/69, à segurança nacional, finanças públicas, criação de cargos públicos e fixação de vencimentos, desde, ressalte-se, "que não houvesse aumento de despesa".
Para agravar a situação, a Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, é um caso explícito de emenda pior que o soneto, pois adotou critério diferente do que vigorou na Constituição de 1967, no AI-2, na Emenda nº 1/69, no texto original da Constituição de 1988 e na matriz italiana desse instituto jurídico. Em todos esses casos, as disposições relativas à edição dos decretos-leis e das medidas provisórias obedeciam ao princípio de direito público, segundo o qual só é permitido o que está legalmente previsto, prevendo apenas os casos em que o uso das medidas provisórias é proibido.
Ademais, a Emenda nº 32/2001 estabeleceu procedimento que muito contribuiu para engessar o funcionamento das duas Casas do Congresso Nacional, ao prescrever no § 6º do art. 62: "Se a medida provisória não for apreciada em até 45 dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência, subsequentemente, em cada uma das Casas do Congresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando."
Urge, portanto, repensar o instituto da medida provisória. O uso ilimitado desse instrumento derroga a tradição republicana de equilíbrio dos poderes e impede o Congresso Nacional de elaborar leis, cumprir sua função fiscalizadora e atuar como fórum de debates das grandes questões nacionais. E, nesse contexto, convém ter presente o que já observara Hans Kelsen: "(...) o controle de providências urgentes [equivalente às medidas provisórias] resulta tanto mais importante desde o momento em que neste campo qualquer violação da Constituição significa um atentado à fronteira entre as respectivas esferas de competência do Poder Executivo e do Parlamento."
Anote-se, ainda, o que deixou registrado o ministro Celso de Mello, em recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF): "Na realidade, a expansão do poder presidencial, em tema de desempenho da função (anômala) de legislar, além de viabilizar a possibilidade de uma preocupante ingerência do chefe do Poder Executivo da União no tratamento unilateral de questões que, historicamente, sempre pertenceram à esfera de atuação institucional dos corpos legislativos, introduz fator de desequilíbrio sistêmico que atinge, afeta e desconsidera a essência da ordem democrática, cujos fundamentos - apoiados em razões de garantia política e de segurança jurídica dos cidadãos - conferem justificação teórica ao princípio da reserva de Parlamento e ao postulado da separação de Poderes."
O Estado de S. Paulo, 30/6/2009