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Presença Brasileira no Caribe

 

Não nos demos conta talvez do que a intuição de Lula permitiu ao País, no trazer a equipe de campeões de mundo para a festa desmedida do futebol em Port-au-Prince no Haiti. Explodia a cidade toda na procissão interminável, no préstito e na boda sem-fim em que cada jogador não baixava dos braços dos fãs, nem descansava da arrebentação do foguetório. Aluimento, quase, dos muros na cidade esconsa, do Dédalo das ruas a sufocar, na pressa do encontro e da praça longínqua. Fomos lá, agora, às urgências urgentíssimas. Os pracinhas do general Heleno ganharam a gratidão popular limpando as ruas de uma sujeira quase fossilizada, numa geologia do lixo abancado às paredes, como verdadeiras estalagmites.


 Desimpediu-se a cidade nesta prática de uma solidariedade civil que trouxe o país mais ao coração do haitiano do que os protocolos das Nações Unidas para a paz social. É nos trunfos dessa descoberta de uma identidade de povo e de origem afro-latina que se assenta o lastro para uma voz brasileira na área. Os haitianos se reconhecerão na extensão dos programas contra fome ou da Bolsa-Família, ou de um efetivo deslanche de um esforço de saúde pública apoiado na luta anti-aids, e contra as epidemias de massa, frente às quais em termos da medicina tropical, ganhamos o reconhecimento internacional indiscutível.


O capital de fundo, entretanto, de nossos laços reside na especificidade da cultura do Haiti, nascida de um esforço histórico que levou à independência em 1804, antes de qualquer outro país na América Latina. Ou, mais ainda, no fascínio da gesta fundadora de seus quatro generais lendários, Toussaint L"Ouverture, Dessalines, Cristophe e Pethion, que escreviam para Napoleão de irmão a irmão, de potentado a potentado, expondo-se à reação do corso, que mandou prender o primeiro destes audaciosos novos donos do poder. Mas só continuou a pompa dos imperadores haitianos, suas coroas, seu Palácio Saint Souci, em pleno Equador, seus imensos castelos, seu rígido cerimonial.


Tendo como pano de fundo deste riquíssimo protagonismo simbólico e fundador, moldou-se o perfil da população, sem embargo da série crudelíssima dos golpes e contragolpes dos grupos rivais, num marcado contraste entre a desinstitucionalização política e a força da identidade de grupo e seus laços de verdadeiras tribos urbanas, sua riqueza de ritos, culinárias e panoplia artística. Atenta-se, hoje, a este enorme potencial de uma coletividade densa de folclore que explode no território origina, refluído, desde meados do século XIX, para a meia Ilha de São Domingos nos promontórios mais descalvados. É população naturalmente migradora, que desembarcou, hoje, em todo o arquipélago antilhano e, sobretudo, fez praça e começo de adentramento na Guiana, e sua promessa continental.


O haitiano não se encontra nunca em diáspora, ao contrário das arribações clássicas e européias. Fecunda, recomeça, arrebanha, sobretudo fervilha. E não é sem razão que no próprio Departamento Francês do Ultramer da Guiana, vai à rebeldia haitiana a responsabilidade pelo único partido separatista em Caiena. Dá conta este dinamismo à melhor experiência de uma afro-latinidade que se redescobriu por inteiro, no nosso hemisfério, nas mesmas raízes brasileiras. Mas carecemos inteiramente de um efetivo contato entre os movimentos afro entre nós e esta consciência a obra de um povo, que se barricou entre um conformismo celebratório e uma presença disruptiva, ainda, no controle das instituições.


O comportamento político, e o decante de uma representação, não são a seqüência e o desdobrar deste enlace comunitário do povo, derramado nas ruas, na força deste comércio ao sol e à chuva, na comunicação continuada deste cotidiano superexposto. A riqueza cívica chega até a originalidade dos dísticos de mobilização inscritos a cada esquina como marca anônima desta presença cidadã, toda ao contrário do que se exprimem como a marca do anonimato, os grafites dos nossos logradouros públicos.


Não chegamos ao Haiti no empedernimento de uma relação de doações, ou da cumulação de dádivas que tendem a transformar o outro em vítima profissionalizada, no seu agradecimento quase cínico. O trunfo mesmo da verdadeira relação haitiana passa pelo reconhecimento da auto-estima do país e da profunda sofisticação com que as suas lideranças comunitárias refletem na universidade ou na produção literária a consciência de uma cultura crioula que transborda o próprio ecúmena atual. É nesses mesmos termos que o contato diretamente universitário e a entente no mundo da arte e da própria vida do espírito assegura o laço que agora começa com as universidades do Pará e do Amazonas e o Fórum de Reitores do Rio de Janeiro. O país que se encontra em Lula, por sobre as nossas elites ornamentais de todo o sempre tem o que dizer à nação de Toussaint L"Ouverture , de Cristophe e Dessalines.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 04/02/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 04/02/2005