Mesmo que demonstrem estar aprendendo na prática a fazer dosimetrias, e que por isso não consigam deslanchar a conclusão do julgamento do mensalão, os ministros do Supremo Tribunal Federal estão dando uma demonstração pública de suas preocupações com a coerência de seus votos, sempre no sentido de não atribuir aos réus penas que não correspondam à real participação de cada um no esquema de corrupção.
Os desacordos a que estamos assistindo ao vivo e a cores aconteceriam da mesma maneira se as reuniões fossem realizadas nos bastidores do STF, em reuniões administrativas internas. Apenas não saberíamos o que se passou, e o acórdão com as penas e as demais decisões seria divulgado já escoimado de todos os erros e incoerências verificados nas discussões da dosimetria.
Este é um dos problemas da decisão, a esta altura irrevogável, de transmitir as reuniões do Supremo Tribunal Federal ao vivo pela televisão. O que pode parecer a nós leigos um desencontro impensável entre ministros que deveriam saber o que fazer numa hora dessas, na verdade é uma discussão normal sobre a aplicação de penas em um processo atípico, que reúne vários réus e vários crimes, alguns dos réus acusados de diversos crimes. Como disse ontem o presidente do Supremo, ministro Ayres Britto, a dosimetria é uma tarefa muito mais simples para um juiz singular do que para um colegiado como o do STF, visto como uma reunião de 11 ilhas, cada qual com seu próprio ponto de vista. Saber voltar atrás em decisões pessoais para se adaptar ao voto majoritário é uma tarefa árdua para muitas daquelas personalidades, que estão aprendendo a fazer isso diante dos olhos da opinião pública, os telespectadores que acompanham o desenrolar do julgamento do mensalão com orgulho e apreensão.
O que aconteceu ontem foi muito diferente dos primeiros dias da dosimetria, quando houve erros claros no uso de legislação e aplicação de pena que não existia na lei. O que se viu na discussão de ontem foi a preocupação saudável de todos os ministros, inclusive do relator Joaquim Barbosa, de dar uma coerência às penas, mesmo que seja preciso revisitar algumas das penas já dadas ao publicitário Marcos Valério.
Precisamos de critérios e premissas, bradou a certa altura da discussão o ministro Luiz Fux, para colocar ordem nas coisas.
Há evidentemente uma diferença conceitual entre o que pensa o relator Barbosa e o revisor Lewandowski sobre a aplicação das penas, mas ambos concordam em que é preciso tomar cuidado para que as penas de todos os réus guardem coerência entre si, e para isso se dispuseram a rever seus critérios de pena base no caso de Ramon Hollerbach, para que sua punição no caso de lavagem de dinheiro seja menor que a já dada a Marcos Valério. É um bom exemplo de como a individualização das penas está sendo tratada pelos ministros, que vêm nela um dos direitos fundamentais dos réus. O ministro Lewandowski continua insistindo em que é preciso olhar o conjunto da pena de cada réu, para aplicar a dose certa. O relator Barbosa mostra-se irritado com essa tese, pois acredita que com as brechas que existem na legislação penal brasileira, com a qual já disse não concordar, é preciso ser rigoroso para que a pena não acabe sendo anulada pelos abrandamentos nela contidos. Foi por isso, por exemplo, que ele se insurgiu contra o pedido do advogado de defesa de Ramon Hollerbach para que o voto do ex-ministro Cezar Peluso, que deu pena mínima para o réu na questão de lavagem de dinheiro, fosse levado em conta na hora da definição total da pena. “Pena mínima que certamente fará com que o crime esteja prescrito”, comentou ironicamente o relator, com um sorriso que já havia irritado o advogado do publicitário Marcos Valério.
As dificuldades apresentadas nessa fase de dosimetria são maiores do que imaginavam os ministros, e é possível que o julgamento não chegue ao fim antes da aposentadoria compulsória do ministro Ayres Britto, a 18 de novembro.
Mesmo que isso aconteça, não haverá grandes problemas por que, como ele comentou, os critérios já estarão definidos na retomada do julgamento no dia 7 de novembro, e ele deixará seus votos por escrito.
A questão a resolver é se o relator Joaquim Barbosa deve assumir a presidência acumulando as duas funções. Embora não exista nada no regimento interno que proíba, como a votação está ancorada nos votos do relator e do revisor, seria razoável que outro ministro presidisse as poucas sessões que restarão, para que não pairem dúvidas sobre a condução do julgamento. Especialmente se o núcleo político for o último a ter as penas definidas.