No centenário de sua morte, ainda hoje não descobrimos o que mais de Joaquim Nabuco celebrar: se a obra intelectual, de que certamente Minha Formação é fulgurante exemplo, ou se a ação do abolicionista, na maior das campanhas políticas que o Brasil conheceu. Entre o intelectual, o político, o parlamentar, o orador e o homem público, a quem reverenciar?
Não se trata de um caso em que a obra a que dedicou boa parte de sua existência haja sido superior à própria vida, apesar de ela o haver consagrado para sempre e tornado imortal, antes mesmo de, ao lado de Machado de Assis, fundar a Academia dos Imortais. Também não é o caso de supor que a vida exemplar que viveu possa ser maior que as atividades a que se entregou.
No capítulo Atração do Mundo, de sua primorosa obra Minha Formação, Nabuco assim se definia: "... nunca fui o que se chama verdadeiramente um político, um espírito capaz de viver na pequena política e de dar aí o que tem de melhor. Em minha vida vivi muito da política com "P" grande, isto é, da política que é História, e ainda vivo, é certo que muito menos. Mas, para a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos, tenho esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ela, como também minha curiosidade, o meu interesse, vai sempre para o ponto onde a ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa."
Ainda em Minha Formação, ele se autoanalisa: "No fim desta fase de lazzaronismo intelectual, quando sou pela primeira vez eleito para o Parlamento, eu tenha necessidade de outra provisão de sol interior; era-me preciso não mais o diletantismo, mas a paixão humana, o interesse vivo, palpitante, absorvente, no destino e na condição alheia, na sorte dos infelizes; aproveitar a minha vida em qualquer obra de misericórdia nacional; ajudar o meu país, prestar os ombros à minha época, para algum nobre empreendimento."
E referindo-se à luta sobre a escravidão e à queda do Império, confessa: "A abolição no Brasil me interessou mais que todos os outros fatos ou série de fatos de que fui contemporâneo; a expulsão do Imperador me abalou mais profundamente do que todas as quedas de tronos ou catástrofes nacionais que acompanhei de longe; por último, não experimentei nenhuma sensação tão cheia, tão prolongada, tão viva, durante meses interrompidos, como durante a última revolta, quando se ouvia o canhão da guerra civil no mar e o silêncio ainda pior do terror em terra. Em tudo isto, porém, há muito pouca coisa política; nesses três quadros, por exemplo, a política suspende-se; o que há é o drama humano universal de que falei; transportado para nossa terra."
Do visconde de Sinimbu afirmou certa feita Machado de Assis que, "como orador, fisicamente não perdia a linha". De Nabuco escreveu Oliveira Viana, em seus Pequenos Estudos de Psicologia Social, "pode-se dizer que não só física, mas moralmente não a perdia".
E continua Oliveira Viana: "O esplendor de suas metáforas e a sonoridade de sua voz, ampla, cheia, de uma pureza de timbre incomparável, destacavam-no vivamente e o singularizavam entre os seus companheiros do Parlamento, aqueles oradores lúcidos e fáceis, que dominaram os últimos decênios do Império. (...) O que, porém, mais nos encanta em Nabuco é o artista da palavra. Dá-nos a sua prosa, uma suave impressão de repouso e de serenidade, com os seus períodos fluidos e mansos, de um andamento quase imperceptível, como o das águas dos grandes rios na proximidade dos estuários. Sente-se ali a atenção vigilante do artista, moderando a correnteza da ideia, rallentando a fluência do estilo e a amplitude dos seus ritmos. Mas de tal maneira o faz, e com tal arte, que desses carinhos de fatura, mal se apercebe o leitor."
Esse era, na descrição de seu coetâneo, o intelectual e o orador. Sobre o político e o parlamentar, o sociólogo Gilberto Freyre, também deputado como Nabuco, escreveu: "O confronto entre os discursos de Joaquim Nabuco pode acusar o seu cosmopolitismo impregnado de europeísmo, particularmente de anglicismo, sem lhe ter faltado algum francesismo. Mas acusa também a pernambucanidade de sua origem, de sua formação, e de sua tradição, do seu modo específico de ser brasileiro. Um modo desassombrado diferente do desassombro mais espetacular do gaúcho. Um desassombro contrastante, por muito incisivo, com a tendência baiana, mesmo em debates, para um trato como que docemente macio de assuntos públicos ou políticos, por mais ásperos. Doçura, por vezes, impregnada de sabedoria política da melhor."
Da atuação de Nabuco como parlamentar constam 12 pronunciamentos em 1879, sua primeira legislatura. Nas legislaturas que se seguiram, de 1880 a 1888, a penúltima do Império, foram 20. O brilho da campanha abolicionista, que o absorveu e à qual se dedicou com o empenho de seu total envolvimento, suplanta, sem dúvida, toda a ação do político liberal e do parlamentar atuante. Mas nem por isso deixa de ser um momento empolgante de sua vida pública.
Hoje, a geração que o homenageia no centenário de sua morte já não é a mesma que, por iniciativa de Gilberto Freyre, prestou tributo ao transcurso do centésimo aniversário de seu nascimento.
Hoje, como ontem, não é maior, mas também não é menor a admiração que sua obra e sua atuação despertam para louvar o exemplo de quem, pelas ideias que expressou, pelas posições que defendeu, pela pregação que o envolveu na mais nobre das causas, continua a merecer o respeito, a estima, a reverência e o tributo do reconhecimento nacional a um dos mais respeitados homens públicos que o Brasil já teve.
Parafraseando Barbosa Lima Sobrinho, concluo: "Nenhuma homenagem mais expressiva poderemos prestar a Joaquim Nabuco do que esforçando-nos para nos elevarmos até a sua grandeza."
O Estado de S. Paulo, 1/6/2010