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A paradoxal popularidade de Lula

 

O mal-estar cívico e o perdurar da popularidade de Lula trazem ao atual panorama da democracia e da sua consolidação toda uma nova problemática. Ou seja; a de se saber até onde o que está em causa é ' um novo pacto social empírico, vinculado à solidez de uma consciência política, independente das condições clássicas de legitimação e das instituições democráticas definidas a partir da modernidade. Colher-se-ia talvez, no quadro do Brasil de hoje, ,o resultado a longo prazo do voto obrigat6rio, letra¬,do ou analfabeto, à margem dos pressupostos do elitismo, tradicionalmente definido como pressu¬posto do exercício desta mesma cidadania.


Indaga-se como esta figuração simbólica se soma à escolha da representação e como a vitória de Lula criou uma investidura, em dupla densidade de vínculo. O eleitor, para além de indicar um mandatário, se reconhece no exercício coletivo do poder. E este liame é o de uma fruição simbólica, à margem do pacto clássico das expectativas da democracia representativa. Ou seja, de que no mandato explícito e, pois, dentro de um tempo de cobrança, o exercício do poder se faça no atendimento das expectativas que ratificou o acerto da escolha. O vínculo se reforça tanto quanto a provisão do interesse particular se reflete, também, na multiplicidade dos atendimentos da coletividade. É neste sentido que o bom governo é - inequivocamente - o do bem comum.


A manutenção da popularidade de Lula até os meados deste ano espanta a visão convencional do poder tanto o presidente sobreviveu ao seu partido, resistiu à razzia da legenda diferente contaminada pelo status quo, e, ao mesmo tempo, não avançou para uma visão clássica dos populismos latino-americanos, num perfil crescentemente autoritário e carismático da condução do poder.


Os incidentes cumulados do mensalão; dos sanguessugas ou do escândalo Renan, de si mesmos, não teriam alterado aquela solidez dos primeiros seis meses do segundo mandato. Tal não impediria que uma sensação geral de mal-estar permanecesse suspensa no ar, numa condição de crescente anticlímax em que perseverou uma difusa interrogação nacional. Chegou ao seu extremo a fase inercial da fruição pela Presidência-espetáculo, e vai ao inconsciente coletivo a cobrança tradicional dos benefícios esperados, concretos, num sistema de poder?


De intermédio, ocorre a catástrofe da TAM, em sombra sobre o nó de serviços mais ostensivos - o do transporte aéreo - a experimentar a expansão de melhores níveis de vida do país que acede, silenciosamente, a uma economia de mercado. O horror de Congonhas forçou o curto circuito de uma cobrança, e essa não poderia deixar de ir à responsabilização do primeiro governante.


Siderada pela hecatombe, nosso inconsciente coletivo procuraria bodes expiatórios, podendo chegar a um tsunami de repúdio ao presidente. Frente à opinião pública, impõe-se o realismo efetivo do impacto e a devolução do país aos seus olhos de ver. Não é um Lula defensivo, nem de respostas a requisitórios difusos o que se reclama, mas o do clamor de tomar à normalidade, do reconhecimento da catástrofe, em tudo que tenha de dor, mas não da paralisia nacional frente ao horizonte prometido. A imagem do Brasil do canteiro de obras brotou, de imediato, no chamado de Lula, sobre a mera retórica abstrata dos números do PAC. O patamar prospectivo resiste, mais que o vindicatório. Não há como cair na armadilha do revide, mas de cobrar responsabilidades à escala da nação à frente. A que votou no petista e não se desarma da sua paciência com o país que começa.


Jornal do Commercio (RJ) 10/8/2007