A quinzena antes da eleição americana trouxe o primeiro abalo real à crença de que Bush se reelegeria fatalmente. Era certeza quase mineral, diante do começo morno de Kerry e da desproporção dos poderes de fogo das máquinas eleitorais.
O conservadorismo de Bush, alicerçado na cruzada antiterrorista, transpunha inclusive os antigos limites infranqueáveis entre Estado e religião. O presidente, ao lado do vergaste furibundo contra Saddam Hussein, não deixa dúvidas quanto a trazer as suas convicções de fé para o seio da sociedade civil, na legislação e nas mudanças da atitude da Corte Suprema que ele pretende levar a cabo. Chega a propor emenda constitucional para proibir o casamento gay; cria um clima de opinião para rever o famoso caso Roy x Wade, que legitimou o direito ao aborto no país; e retirará todo o auxílio público ao avanço de pesquisas sobre células-tronco, tanto vulnerem o embrião humano.
Um segundo governo Bush só acelerará o enraizamento fundamentalista do país, atingido pela queda das torres, exacerbando o sentido profundamente religioso -ímpar nas sociedades modernas ocidentais-, em contraste, inclusive, com o mundo europeu. A ofensiva contra o terrorismo, não se podendo despregar da mirada no islã, intitulou-se de logo uma cruzada e põe hoje em causa o laicismo ensejado pelos "foundings fathers", como Jefferson e Hamilton, enquanto princípio constitutivo do mundo das liberdades e da democracia. É o mesmo que a igreja pós-conciliar reconheceu como um sinal dos nossos tempos, no acatamento do pluralismo dos credos, a impor uma neutralidade essencial à ordem civil.
A candidatura do oposicionista Kerry, católico, só tornou mais nítido o confronto com o ideário religioso-político de Bush, ao manifestar-se contrário, pessoalmente, ao casamento gay e ao aborto. Nessas arrancadas do vale-tudo final, de dois mundos americanos que se chocam de maneira exemplar, seria esperada a palavra de uma facção do episcopado americano em apoio frontal a Bush. Monsenhor Chaput, do Colorado, entende que é pecado o voto em Kerry, por sua posição tomada em face do aborto ou da utilização das células-tronco para experimentação médica. O arcebispo não poupa a frase de que não poderão comungar, sem arrependimento prévio, os eleitores que votarem no democrata. O Vaticano desautorizou a declaração.
O endurecimento religioso de Bush nos três debates propunha-se como alvo a esse expressivo eleitorado católico, concluindo que as diatribes contra Kerry o levariam nesse roldão do voto republicano, à direita de Deus. É toda uma riqueza do testemunho confessional a desses católicos dos Estados Unidos, que argúem da posição pastoral da igreja diante da "civilização do medo" e da violência inédita aos direitos humanos, deflagrada nos golpes e contragolpes na escalada do terrorismo, em que se enleou a cruzada bushiana.
Não é possível deixar de interrogar os candidatos sobre a posição diante da volta à cultura da paz, de que foi essencialmente defensor o atual pontífice; de reiterar a condenação à tortura, tal como evidenciada em Abu Ghraib; dos reclamos pela volta ao exercício pleno da cidadania, vencido o ferrete permanente da suspeita sobre os afro-islâmicos dos Estados Unidos, transformados em novos párias da reivindicação social; ou, sobretudo, pela eliminação do "buraco negro" de Guantánamo, no tratamento dos inimigos combatentes, em situação bem pior que a garantida aos próprios prisioneiros nazistas em Nuremberg. São quase dois anos já, em que 450 afegãos continuam sem processo, sem saber do que são acusados, sem defesa, sem contato familiar e a produzir hoje reações em massa das próprias Forças Armadas americanas, do Judiciário e do Legislativo, em petições monstro ao Salão Oval.
A opção entre Bush e Kerry é também a de negar ou defender a volta às Nações Unidas como a única fórmula para fazer uma política da paz, transformar o terrorismo em crime contra a humanidade e garantir o apoio pelos Estados Unidos à verdadeira mobilização internacional para combatê-lo. Disse-o de maneira admirável o próprio cardeal Etchegaray, dias antes do fato consumado da invasão de Bagdá, quando desembarcava na cidade, a mando do papa, para dissociar de vez o intervencionismo bushiano de qualquer evocação de uma cruzada cristã.
Essa palavra, aliás, cobra mais incisivamente dos seus pastores um catolicismo latino nos Estados Unidos e que guarnece de maneira maciça as forças militares no Afeganistão e no Iraque, sente na própria carne o imperativo da pastoral da paz e de um mundo que, ao optar por Kerry, pretende, de fato, fugir de uma "Guerra dos Cem Anos". E é a "Gaudium et Spes" que, sobretudo, ensina-nos que uma igreja de seu tempo encontra as prioridades de um mundo a perigo e do primeiro alvo sempre da esperança. A palavra contra a mortandade em massa, e sem retorno, não é definitivamente a do atual ocupante da Casa Branca.
Folha de S. Paulo (SP) 28/10/2004