O avanço da era Obama dá ênfase em todo mundo ao empenho democrático e às exigências da cidadania e dos direitos humanos. Na dimensão latino-americana depara-se a interrogação das reformas constitucionais da Bolívia com vistas à mudança do suporte social do sistema político e permite aos povos indígenas chegar, de fato, ao comando do país. Até onde a ideologia do Estado-nação castrou o verdadeiro substrato cultural do país na força de sua identidade pré-colonial, a reclamar hoje a retomada de sua autonomia decisória?
A onda política que trouxe ao poder Evo Morales reclama uma vastíssima reordenação institucional de que a carta Magna torne-se um primeiro laboratório. O país se reconhece uma Confederação de 36 nações indígenas, precisamente definidas na Lei Magna, garantindo um protocolo de competências de que deverá dar conta o Estado emergente, distribuído em departamentos, províncias, municípios e territórios indígenas originários e camponeses.
As etnias aymara e quéchua pesam com 65% e 22% na dita Confederação, tanto quanto alguns dos povos indígenas resguardados pela Constituição não passam, às vezes, de poucas centenas de membros. Mas a localização das etnicidades ameaça, para os observadores externos, a unidade do estado no conflito latente entre a massa indígena no altiplano e as regiões da dita Media Luna, nas planuras de plantio de grosso da riqueza boliviana em torno de Santa Cruz.
O nacionalismo fundador boliviano já avançado com Presidências anteriores a Morales, como a de Carlos Mesa, levou a uma primeira ruptura contundente com o contitucionalismo liberal. Não há mais um direito absoluto de proprietário da terra, mas o respeito à destinação social que bane a alienação e estabelece partilhas coletivas do subsolo. A nova justiça indígena rompe com o princípio da sua unidade num Estado democrático, criando arguições separadas de direitos e deveres de uma mesma cidadania. De toda forma, a inovação implica a responsabilidade das etnias no qeu venham a ser manifestações de segregação ou de preconceito das populações.
O avanço paradoxal da democracia na Bolívia de Morales reside na inovação de um contínuo revisionismo constitucional para dar conta do novo conteúdo identitário abafado pelo Estado-nação, em que o sistema colonial permaneceu na República independente.
Os membros do atual governo, e as lideranças do movimento ao socialismo, são os primeiros a reconhecer o que existe de contradições no texto e como ele é um consenso à obra que deixa aberta a operacionalidade de Estado boliviano. Quer desenvolver todas as novas premissas políticas do que seja não o povo abstrato, mas a emergência inédita e secularmente reprimida das culturas primordiais indígeno-campesinas.
O amplo debate da Carta Magna venceu talvez a tentação dos separatismos temidos ainda há meses. Os arroubos radicais de autonomia não impediram que capítulo base da Carta definisse o separatismo o separatismo como "traição à pátria". Não haverá República de Santa Cruz.
Jornal do Commercio (RJ), 31/7/2009