Oprimeiro disparo verbal de Bush triunfante não deixa dúvidas sobre a voracidade do propósito desses quatro anos, sem concessão, sobre o projeto do sacro império, referendado maciçamente nas urnas da América profunda. Sabe-se ungido para o que vem à frente, sem perder tempo inclusive nas mesuras com o perdedor. O “conservadorismo compassivo” passa à modelização do mundo, segundo os novos artigos de fé da democracia justaposta à cruzada antiterrorista. Entramos num “crê ou morre” do seu modelo de poder - enquanto não descansará, segundo o corão do Salão Oval, em transformar os Estados autoritários à sua imagem. Coube a Kerry, no canto do cisne, lembrar a senda aberta à reconciliação americana e que agora buscará em vão cicatrizar o racha. Desconhece Bush o desagrado da outra América.
Retemperou-se nesta fé sumária dos renascidos em Cristo, vindo da fuga ao alcoolismo, recomposto ao modo do evangelismo da miríade de seitas que hoje configura o interior dos Estados Unidos. A novidade do pleito sobre o qual se debruçou o mundo, foi o da mobilização aluvial que tirou por uma vez a maioria da população da modorra doméstica no dia D.
Sim, a mocidade votou mais por Kerry. Mas a massa nova, que deu caráter cívico à eleição, acabou por avantajar o situacionismo medular do país sobre aquilo que, se pensava, fosse uma impaciência generalizada contra o governo Bush. E a massa de sufrágios do republicano no Kentucky, no Tennessee ou nas Carolinas foi comparativamente maior que a dos votos de Kerry nos Estados costeiros e nortistas. Para além do apregoado voto do medo, avançou o da confiança intransitiva no país que aí está.
A importância da manifestação sobre o casamento gay, o aborto ou a interdição da pesquisa sobre as células-tronco, vai a um laço englobante de crenças em que os Estados Unidos Bushianos se transformaram, ganhando uma religiosidade que só perde agora para o fundamentalismo islâmico.
A massa de plebiscitos que acompanhou na maioria dos Estados o simples dilema entre Kerry e Bush, cobra do eleito uma fé vigilante, missionária, restauradora. O presidente, renascido na sua igreja texana, instaura o país numa razão da providência sobre a própria razão de Estado. Acredita que seu mandato nasce além até da força dos votos e tem por tarefa trazer os artigos de sua fé para o próprio arcano da Carta Magna.
Não será outro o primeiro gesto do sumo poder presidencial que o de levar à emenda constitucional a condenação do casamento gay, no caminho de outros anátemas a barrar conquistas fundamentais dos direitos humanos e do feminismo, dos EUA da tradição democrata rooseveltiana, enraizada nos founding fathers . Foi esse arrasto geológico-político que se consumou no 2 de novembro, a ponto de transformar a palavra liberal num palavrão, e deixar o discurso de Kerry às portas do perigo de um novo macartismo, no uníssono dos evangélicos sobre a caça aos terroristas e a guerra de cem anos que o mandato abre - em branco - ao presidente da cruzada sem fim.
A História não deparou ainda este império todo-poderoso, e ao mesmo tempo apavorado - ao contrário da tranqüilidade romana, contra os bárbaros dos confins. De cabeça feita, uniforme, pela descomunal expropriação mediática do que pense a população. Da absoluta rejeição do exterior ou, sobretudo, de qualquer papel para as Nações Unidas frente à soberania americana.
Bush também sai do pleito sem nenhuma cobrança interna imediata do país que nele votou. Como ficam os outros Estados Unidos que, por uma vez, sabe que não há o retorno de praxe às reconciliações pós-eleitorais? A força do país progressista sabe que ecoa hoje maciça expectativa mundial. Kerry se tornou fiador e, ao mesmo tempo, prisioneiro do seu próprio diagnóstico de um racha, podendo chegar ao Armagedon. E os ouvidos surdos do contendor vitorioso lhe obrigam a encampar, desde logo, a vigília da lucidez perdedora.
Não se exclua de logo a possibilidade de assumir a liderança democrata no Senado, neste comportamento magnificamente inovador de manter à tona o poder democrático do confronto verdadeiro, que, aliás, lhe deu estatura nacional.
Não há, talvez, papel mais criador para que um liberal cumpra nos Estados Unidos agora, enquanto o país não volta à geléia geral pós-eleitoral. Impede-se, assim, a oposição de cair nas mãos de um radicalismo das esquerdas, que despontam para uma virulência inédita, com militância só comparável nas tribos religiosas do coração continental do país.
Kerry tem um prazo contra o relógio para acabar de dizer ao que veio, no relance em que se começa a perceber a América questionadora, laica, de Jefferson e Wilson - e não do monótono cantochão domingueiro, que começa a entoar o sacro império do século XXI.
O Globo (Rio de Janeiro) 13/11/2004