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Opinião: Da Igreja-espetáculo à Igreja-testemunho

 

A sucessão de choques das últimas semanas acarretadas pelas manifestações de Bento XVI, retornado da peregrinação latino-americana, tornam inequívoco o padrão, já, do novo pontificado. Enfrenta a secularização pela força de um testemunho, que não se poupa em mostrar o perfil que quer para a Igreja. Impõe-se uma recuperação da mensagem, para pautar inclusive todo o novo teor profético que sinaliza o papa Ratzinger. E tal pode ir à própria guinada, frente ao pano de fundo do Vaticano II e à sua opção pela palavra no seio de nosso tempo.


As exéquias de João Paulo II fizeram da Praça de São Pedro um verdadeiro encontro dos homens, debandado, daí por diante, pela "civilização do medo" e da "guerra de religiões". O mais preparado dos papas, agora, não esconde a consciência - e a angústia - do caminho que se impôs no confrontar o mundo secularizado pela nitidez de uma docência ao risco da volta das catacumbas e da perda da sideração e do espetáculo do papa Wojtyla.


O inédito em Bento XVI começa pelo intelectual que continua a escrever e desdobra o seu pensamento fora do ensino ex cátedra, antecipando o seu entendimento e percepção da modernidade. Deixou clara, no diálogo com Habermas, a sua visão da Igreja, como um todo de fé e racionalidade a se confrontar no universo vazio de valores ou, pelo menos, entre anulado no seu relativismo. Mas Ratzinger ao mesmo tempo reconhece a moldura contemporânea no cenário, essencialmente democrático, em que a pregação se faz polêmica, e esta vai ao testemunho e, pois, à contundência da mensagem.


A complexidade do pensador, na angústia do dizer radical, acaba por marcar, paradoxalmente, de ambigüidade o seu anúncio. O intelectual fala pelo papa em Ratsbona e desestabiliza o longuíssimo desarme na confrontação com o Islão. O cultor clássico da latinidade se expõe agora aos integrismos cristãos. E o pontífice reitera um primado católico, em tempos em que a verdade não exclui a caritas - palavra-chave da primeira encíclica - e o congraçamento dos homens, no empenho de seu antecessor e ao modo histórico para continuar a encarnação e a palavra no seu seio.


Com passivo na expectativa deste pontificado, aí está a regressão do ecumenismo em que, hoje, inclusive, os outros credos têm vindo a mais do meio do caminho para preservá-lo, ou na retomada da resistência islâmica a um cristianismo reentrincheirado no Ocidente. A nova antimodernidade, distinta da lição de São Pio X, foge à opção alimentada pelo Vaticano, de uma intrínseca condição de melhoria, na história, do "homem todo e de todos os homens". Em termos de América Latina, a visão emergente de Ratzinger não deixa dúvidas quanto ao que vê como horizonte e caminho profético para a palavra evangélica.


A Cúria vem de alterar o texto final da conferência de Aparecida, eliminando toda referência à comunidade de base, "como um ponto de partida válido para a missão eclesial no continente". No embate romano com a colegialidade dos bispos da América Latina, mesmo se forem eliminadas todas as referências à Teologia da Libertação, permanecia a referência ao suporte, por excelência, de evangelização entre nós, nascido da inspiração do Vaticano II. Na visão ex post agora de Aparecida, as comunidades são apartadas de todo presságio ou fermento de futuro, no que o último Concílio via como a moldura do anúncio, no seio concreto de nosso tempo.


A lucidez de Ratzinger só reforça o sacrifício do que considera como o seu dever dramático diante da secularização. O relativismo sem volta de nossos dias, para Bento XVI, bloquearia as sendas para o caminho salvífico, pressentido pela colegialidade conciliar. E pode implicar o descarte no que foi, neste quase meio século, a busca de uma Igreja versus populum, congraçada, de saída, pela esperança, para ouvir na caridade a palavra da fé.


Jornal do Brasil (RJ) 25/7/2007