A superlegitimidade da eleição de 27 de outubro acelerou de imediato a expectativa nacional pela guinada de poder. Define também uma pauta inescapável para a tentativa de pôr-se à obra uma sociedade em mudança. Descarta-se, por aí mesmo, toda a viabilidade de uma ação de ruptura, tangida pela impaciência acumulada numa "esquerda da esquerda", ou na dita explosão da "forra da esperança". Fora do sistema, a marginalidade foi à mobilização continuada no pressionar o regime visto como barreira ao acesso do outro Brasil.
Deparamos agora com toda a metamorfose que o ganho de Lula imediatamente impõe à química da espera coletiva. Perde o aríete de toda ação social desestabilizadora ou remontada à oratória revolucionária para que os destituídos cheguem às portas das instituições. E nelas penetrem, afinal, testando a credibilidade de Lula quanto aos níveis de tolerância do País como a democratização do futuro, ou a ampliação do dito país possível.
Esperarão ainda, mas com outro ânimo, as populações com as cicatrizes do sacrifício, de toda a ascensão social restrita no modelo que aí está. Isto é, de nação mais do que habituada à conformação como que se defina sempre como o "melhor dos mundos", condenado à dimensão da conjuntura, de que não se extrai uma história para todos os brasileiros.
A presença dos "Sem-Terra" no sonho de chegar ao Palácio, se desmonta o imaginário dos nossos medos de campanha, marca-se no início do Governo Lula. Este as acolhe como parte do novo jogo da esperança, que não pode esmorecer, mesmo nos arranhões que impõe ao novo regime. As ações afirmativas até se redobrarão, mas numa impaciência que sabe do novo escoadouro.
Nesta pedagogia da espera crível os liderados de Stédile vão destacar-se do açodamento dos marginalizados que aderiram ao PT e se apossam de uma cobrança, sem os títulos de quem sofreu o caminho e preserva as raízes e a identidade do corpo político feita expressão única do outro Brasil.
O regime estará preparado para os reclamos dos recém-vindos, por este voto extraído até mesmo da classe média constitutivamente desconfiada. Ou, sobretudo, da real politica; do semiconformismo, imputável à esperteza permanente e ao cálculo exaustivo das classes empresariais, após o estouro da boiada, resultante das primeiras adesões inequívocas das lideranças que vão compor o novo Conselho Econômico do País.
O Governo, por outro lado, contará com a desaparição da escaramuça imediata dos movimentos sociais. Mas para refratá-la, tanto a nova simbólica não recaia nas retóricas exauridas dos donos do poder de sempre para uma trégua histórica. Ou para todos os bordões sovados, dos governos de "união nacional".
Ou de convocatória irrecusável para um quadro de salvação política, distinto das contradições neoliberais que herda o regime emergente. O regime Lula não pode fugir à criação de um núcleo duro, da melhor identidade do partido, por fora de qualquer tentação de melhoria do pacto político ou do beneplácito externo com a nova situação.
O Governo que chega não aspira à trégua clássica, para a lua-de-mel convencional com o novo hóspede do Planalto, no gesto de polidez do sistema, entre atores superconhecidos, no perde-ganha das rotações da velha elite de poder. Conter o desagravo da espera, de todos que repartem realmente um imaginário coletivo da virada não exclui uma repartição concreta do sentimento de mudança e uma negociação inédita de fé no que se possa ainda protelar.
O símbolo, no caso, vai ao registro de uma exemplificação concreta de ações e não do figurar-se, por mais dramática que seja a manifestação de uma agenda de compromissos em que se remói, e cansativamente, a paciência tradicional com o "vir a ser" do País. O novo anúncio, por sua vez, não pode separar o paliativo na área da fome, da imediata dramatização, justamente, para a melhoria social, do que representa a reforma tributária e, por ela, a diversificação dos recursos dos estados e municípios para as vigências críticas da educação, da saúde ou da moradia.
O PT conta com esta engrenagem da espera útil ou do mutirão subjetivo, para negociar o imediatismo da cobrança de uma sociedade civil que a vitória de Lula trouxe ao procênio da vida pública brasileira. Sabe-se de como, em toda a história dos levantes sociais, o estopim se acende sobre um acidente, numa insatisfação da hora. Mas é esta labareda que acorda o sentimento ainda difuso de inconformidade que encontra o caminho do curto-circuito e, por ela, o do abate de um governo. A paciência disciplinada - como a do núcleo dos sem-terra - não é imune à liderança adventícia, crescida no roldão de um descuido na espera.
Um Governo petista expõe-se, permanentemente, àquele arranhão-sinal, tanto quanto o novo sistema inclui, pela convivência com os excluídos, todas as forças em ascensão. Coabita com a tensão reconhecida e a incorpora, em contraste com o alerta de desestabilização, típico dos regimes anteriores. Não existe para a nova Presidência o perigo da perda dos freios dos governados, já que se penetraram de um real sentimento do que pode a prática - por uma vez crível - como seqüência às promessas de campanha.
Não se educou por inteiro ainda o Brasil que levou Lula ao poder à magnitude da guinada que se esconde sobre a força contagiante do símbolo. É o empurrão histórico reforçado pela repetição das tentativas, que continua no PT que chega ao Planalto e soube resistir ao deslumbre do ganho final. O telão de fundo que se lhe substitui é o de uma nação em processo a que mal se habitua a coletividade recém-desperta, para um outro tempo social que o da "ordem e progresso"; das melhorias graduais e seguras, do enunciado já esquecido do compromisso tucano do "avante Brasil". Pálido e desenervado.
O PT dispõe da fiabilidade das cicatrizes para colher no tempo certo. E a prática de vitória do partido, na condução que lhe impôs José Dirceu, na combinatória de símbolo e exemplificação, assenta uma solidariedade silenciosa. Resulta de uma consciência de mudança à obra e do pacto, interno e cúmplice, com a coletividade, desde que se renove a cada dia.
Jornal do Commercio (RJ) 6/12/2002