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Obama, entre o espanto e a esperança

 

As vitórias nítidas de Hillary, nas prévias em Nova York e Califórnia, destruíram a escalada de Obama? Ou ela só começa, diante dos novos dados deste eleitorado inédito, que acorreu em massa às primeiras urnas?


Aí está a surpresa da votação da mocidade, e mesmo dos trintões, pelo senador do Illinois, em todo o país. Ou do apoio disseminado dos brancos ao candidato fora do sistema. Ou, sobretudo, à torna do eleitorado afro a Obama no Sul – vide a Georgia e o Alabama –, apoio certo a Hillary ao começo da campanha. Sobretudo, o que martelará os Estados Unidos daqui por diante é que o candidato democrata é o único que pode, a esta altura, derrubar McCain, consagrado de vez como a escolha republicana ao próximo pleito. Diante do eleitorado, o abalo, a qualquer preço, do status quo parece se avantajar sobre o debate do conteúdo mesmo da mudança, em que se tem esmerado Hillary, inclusive sobre o contendor.


A alternância “bem” da candidata é proposta com todos os cuidados para satisfazer o establishment do país, qualquer que seja o seu partido. Só infringiu agora esta prudência declarando-se, afinal, de forma temporã, contra a presença americana no Iraque, estocada por Obama no seu currículo inflexível, desde sempre, contra a guerra. Não há susto em Hillary, e esta não pode sair do script, que, na verdade, perdeu eleitores com a declaração intempestiva. Permanece uma indeterminação nacional quanto à opção democrata, que vai ao fio da navalha da convenção decisiva.


O trunfo real de Obama está em manter o símbolo estrito da candidatura diferente entre as dinastias democratas e republicanas do último quarto de século, mais do que dizer o que precisamente pretende quando se expõe a repetição do discurso ou de um segundo script de Madame Clinton.


Permanece em irritantes generalidades, mas já assegurou um legítimo breakthrough, ponto de partida indicador de novos tempos. Tirou a candidatura negra do gueto, e não a quer como o voto afirmativo de minorias, vitimadas em protesto sobre protesto, ao longo das últimas décadas. O novo é que só a alternativa verdadeira derruba McCain, que se consolidou como proposta salvacionista dos republicanos, empurrando para os bunkers da reação extrema o evangelismo político que, por sua vez, não perdeu tempo em mostrar ao que veio. Entrincheirados no seu fundamentalismo religioso, tanto Huckabee quanto, sobretudo, o mórmon Romney, declaram que o vício fundamental do competidor McCain é o de ainda manter laços com liberais no Senado americano.


Os resultados da “super-terça” não ficam como um protesto errático, diante da mudança impossível. O que está em causa, talvez para espanto da mídia americana, é o mergulho com volúpia num impressentido inconsciente coletivo selvagem, cansado da “civilização do medo”, da mentira presidencial contumaz e da transformação do maior país do mundo em nação exposta à desconfiança universal.  As escolhas democratas, de toda forma, já traduzem a ruptura com a inércia deste processo, espantam de vez o que, ainda há dois anos, se pensava, para delírio dos neoconservadores, como canonização do paraíso em que Reagan via o futuro, ao demolir-se de vez a Guerra Fria. Já espancou o temor das hegemonias o espetáculo inédito que, nestes dias, o povo americano esbanja a sua liberdade e autonomia na escolha de candidatos, escapando à fatalidade a que o atrelou o Salão Oval bushiano da Presidência distante, taciturna e em permanente anticlímax.


Numa curiosa e nova hora da verdade, a volta ao sonho americano não é a de uma torna também, ingênua, à saga kennedyana. Consagrado por Ted, Obama perdeu agora maciçamente para Hillary o Massachusetts, terra da tribo e do mito. Empertigado, nada casual, em pleno physique de rôle, sem concessões, Obama se afasta tanto dos populismos eleitorais, quanto da pregação carismática. Sabe que responde a uma lógica objetiva da nação imensa, que precisa do espanto. E Obama se transformou no refém sagaz desta surpresa, para ter direito, a prazo, de ser a sua esperança.


Jornal do Commercio (RJ) 8/2/2008