Os dois jornalistas franceses desaparecidos nas cercanias de Mossul foram presos por bandidos, literalmente, de beira de estrada, sabedores do preço pagável pelos invasores do Iraque, e países estrangeiros a eles assimilados, para recuperar os seus nacionais. À margem de bandeiras e avisos, toda carne forasteira é fisgável e oferecida à venda no leilão do horror pós-Saddam. Dias após, arrebentam manchetes idênticas sobre duas italianas capturadas.
Desconheceu-se o paradeiro, de saída, pela falta, ainda, das condições de um bom negócio. Os captores não sabem a quem interessa o que fizeram, e a que preço. Pior, entretanto, é que quando fechem a transação entreguem a presa a resistentes que se improvisaram em terroristas, radicalizando um sentimento larvar antiocidental. A decapitação anunciada das moças italianas, para se trocar em feliz desfecho, ou a morte de Bigley, só marcam a entrada, para bem ou para mal, do negocismo amador, no mercado do último repto. Toda a mesma interrogação volta com o seqüestro de Margareth Hassan, com a mudança sucessiva do cenário de fundo - no pedido lancinante ao povo britânico - transmitido pela Al Jazeera.
Todo o horror do terrorismo, baixado como o Apocalipse do começo de século, enfrenta essa perplexidade de desfechos. A enormidade da agressão criou o luxo do aparato cibernético para preveni-lo a qualquer preço. E o mundo da cautela universal aí está, na servidão paga por toda a humanidade viajante, no sem-fim de inspeções e revistas em que nos deslocamos hoje no mundo do medo, da agressão indiscriminada e irredutível do alvo letal a alcançar. Sai-se da guerra de guerrilhas para a do terror, exatamente nessa falta de confrontação direta entre os contendores. A captura de reféns é já recurso ocasional nesses lances intrinsecamente destrutivos do combate à distância e embuçado. Via de regra, são seqüestros que só exasperam a impossibilidade de transação - como pedir a retirada de forças americanas no Iraque. Mas excepcionalmente podem resultar, quando é quase simbólico esse contingente, logrando-se a liberaçao de um filipino contra a ida para casa do minipelotão do seu país.
Sobretudo não existe, nos padrões da civilização ocidental, guerra de reféns - como se o agredido retalhasse na mesma moeda. Não foi outro o horror, por exemplo, do nazismo quando se exterminou uma coletividade inteira - como Lídice, na antiga Tchecoslováquia - em retaliação à morte de soldados do Reich. O Al-Qaeda não poderia ser confrontado com a ameaça, pelos Estados Unidos, de morticínio inteiro de comunidades árabes - trocando os anonimatos da agressão e contra-agressão - como advogam os radicais delirantes da negação do extermínio universal.
O que não se previa era, com efeito, a decomposição da mecânica da guerra terrorista, na indústria do seqüestro, na sua aplicação cada vez mais privatizada pelo bandido da hora e pela criação de um mercado aberto de reféns, terceirizada a arma para a confrontação a frete. Vamos chegar à predição de um excesso de reféns sem fregueses, criando a sua execução sem saída, ou seu abandono no ermo nesta privatização final da escalada, e da metástase do terror, como desenhado para o pós-11 de setembro. O cativo inútil já desponta no melancólico impasse em que a violência e a guerra encontram as mecânicas mais iniludíveis do que possa, ou não possa, o mercado, e a barganha dessas vidas a prêmio.
No quadro a que está chegando, rapidamente, o pós-Iraque, o Al-Qaeda depara o inesperado de retomar a condução mesma do processo, e devolvê-la à dimensão da escalada que assumiu, com todos os riscos e passivos dos lances começados com a queda das torres. O seqüestro não é mecânica deste jogo, que não transaciona. Quando rarissimamente o faz, é para pedir - frente à potência hegemônica - condutas impossíveis, de princípio. Vai-se, por aí mesmo, à morte dos reféns, transformados até num holocausto, pela alegada dívida do Ocidente com os povos que dominou ao longo da modernidade.
O Al-Qaeda tem hoje a tarefa ingente, para a credibilidade de sua guerra, de repelir essa fieira de raptos, postos à sua conta e até à mercantilização do seu confronto. Pode-se estar às vésperas do pedido de pecúnia - e, pois, dos resgates - para manter a luta sem fim. Está-se, grotescamente, diante de uma prostituição do terrorismo, e Bin Laden não tem qualquer poder sobre o número crescente de reféns trazidos à recompra pelos países ocidentais. Nem conserva o comando sobre essa proliferação de frentes antiamericanas, que logram, mais que a disseminação do Jihad, abrigar tão-só um próspero e nascente negócio do seqüestro.
Interessa aos combatentes do Islão a imagem generalizada de uma rede fervilhante de combatentes de Alá, ou perder-se-á, nesse enxame, o sentido do recado, da última e terrível confrontação? O horror pós-11 de setembro dobrou depressa demais o fio de um conflito articulado. E por maiores que sejam as violências e as disciplinas para a "redignificação" dos seqüestros, é tarefa de escrever na areia, a de garantir estarem no jogo as levas de reféns prisioneiros que despontam no Iraque e no noticiário urgente da Al-Jazeera.
A escalada-limite não esperava começar a morrer por dentro, sem molejo, para corrigir uma ação internacional sem limite. Aí está, exposta à confusão da mensagem e às transigências que não são suas, mas que não tem como desperfilhar. Das Star Wars passamos para as pilhagens de estrada e o leilão da hora dos salteadores de vidas. O Al-Qaeda apenas começa a enfrentar, contra a trágica implicabilidade de sua guerra, as tentações de mercado, a que não foge o travesti da luta política. E aí a sua infinita capacidade de burlar o recado certo para constituir um podre e inútil mercado da morte sem tomadores.
Jornal do Commercio (RJ) 29/10/2004