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O simples dizer de Zélia

 

Não temos, talvez, exemplo de casal como Jorge Amado e Zélia Gattai, na imagem que lhe quis dar a escritora que viemos de perder. É invariável a vinheta que nos deixou, entre viagens mil, o meio século da convivência exuberante no Rio Vermelho, em Salvador. Dele nasceu a escritora temporã, no seu dizer de ficar, em nossa literatura. Aí estão as histórias infantis, crônicas e romances. Mas Jorge cobrou da mulher, de logo, o estilo único da reminiscência, no seu relato fundador da chegada dos Gattai ao Brasil.


"Anarquistas Graças a Deus" nos dá de corpo inteiro, na força de sua coloquialidade, o raconto da migração italiana distinta do deslocamento anônimo para as nossas paragens. Fala-nos da chegada de uma Colônia Experimental Socialista, de professores, pequenos comerciantes, universitários e operários, como Francisco Arnaldo Gattai e Argia, avós de Zélia, a partir de Genova, em 1890, no "Citá de Roma". Era verdadeira brigada missionária, utópica, capitaneada por Giovani Rossi, O Cardias, que cativou, nas conversas em Milão, a Carlos Gomes que levou o pedido de apoio ao Imperador, destronado meses antes da chegada dos idealistas colonizadores ao Paraná.


Ernesto Gattai, pai, só reforçaria a determinação anarquista, seus modos, canções e discursos, na radicalidade de florentino, em contraste com a mulher Angelina, católica do Veneto, que chega finalmente à Alameda Santos, no aconchego do bairro, e seu vinco italiano, até à "rapaziada do Brás", nos anos 20 e 30. Este contágio irradiante, no relato do escritório da família continuada no intenso coloquial das lojas; dos cinemas, já na crise dos filmes mudos e do desarvoramento das suas orquestras; dos pontos do jogo do bicho, e das idas à rua, de Zélia e de suas irmãs ao carnaval, obrigadas, de hora em hora, a voltar à casa.


O livro nos deu esta épica única, em que as travessias de Gênova, dos Gattai como dos Dal-Col e outros brasões anárquicos, dizem deste estro da viagem sem volta, da odisséia do porão, do chicote dos primeiros capatazes, nas plantações de Curitiba e dessa conquista do centro de São Paulo, na paixão do comércio de automóveis e na prosperidade imediata que o patriarca deu aos seus, entre prazeres e novos medos urbanos, dos ladrões, do mítico Menegueti, ao João do telhado, às peripécias, entre sonhos divinatórios de acerto no jogo do bicho, do começo do fascínio dos anúncios e do consumismo coquete, prometido pelos misteriosos frascos de elixires femininos.


O aparente desatavio da narrativa de Zélia - via-o Jorge - troca-se na artimanha deste seu contar definitivo. Acompanha o impropério, a interpelação, a alegria grossa em que sua gente, toda ao contrário da migração nos guetos alemães, alastra-se e constrói uma ribalta impressentida, nesse diálogo da sala de jantar passada ao colégio, ao giro do automóvel, ao passeio nos quarteirões alargados. Não é uma Zélia rival do marido a que perdemos, nem a da obediência estrita ao vaticínio de Jorge. Mas quem se apossou do seu relato, desde menina, atenta à memória da conversa de mesa, ou às apóstrofes do utopismo paterno, a escapar do pseudo-descuido do escrever, para a disciplina maior e severa, da verdadeira simplicidade


Jornal do Commercio (RJ) 30/5/2008