As primeiras declarações dos Sem-Terra, após a vitória estrondosa de Lula, mostram toda uma nova arquitetura da espera da saída da marginalização social dos 25% de brasileiros, ainda deserdados de todo futuro. Disciplinados, os liderados de Stédile começam até por avaliar o comportamento dos seus próprios membros, como José Rainha, no Pontal de Paranapanema. Querem evitar toda ação provocadora, situar os movimentos de protesto, da dita "ação afirmativa" e até mesmo reposicionam-se na discussão, em profundidade, de um novo modelo de real reforma agrária.
O que enfrentará um governo petista, a vingar, é a expectativa desta zona limítrofe à militância dos seus quadros e ao programa manifestado pelos governantes, e todo o impacto que terá sobre o mesmo, o Brasil de fundo; o da ação-afirmativa; do protesto solidário da nação marginal, por fora das mecânicas normais e assentadas da cidadania institucionalizada. Mais que a utopia da democracia direta, o pleno acesso a direitos do "outro Brasil" reconhecerá, mais e mais, como vindos do país da exclusão, os movimentos de pressão social continuada.
Foi trégua, o silêncio dos "sem-terra" durante a campanha de Lula? Tática, ou mera concertação, a tempo e a hora com a legenda, a não perturbar a sua chegada a Palácio? Ou, de fato, a vitória do PT implicará, no dia-a-dia de trato com o país da marginalidade, um cabo-de-guerra de concessões e resistências onde, afinal, a marca de mudança do regime requer uma agenda de aceite das políticas da ação afirmativa, de transações, de novas simbólicas de espera, e elastecimento do protesto como ação reconhecidamente democrática.
Tais caminhos defrontam, respectivamente, o desatamento da garra da espera e, nela, do que se tornou manifestamente obsoleto; o que só requer uma nova negociação de prazos dentro das outorgas esperadas, ou o que, pela sua acomodação num conformismo, frente à demora das concessões, reclamaria formas inovadoras de alerta.
Em que termos, por exemplo, na ação de protesto, a sincronia entre marchas, ocupações de espaço e plantões cívicos, podem exatamente ser a resposta e o contraponto à profissionalização da violência, que começa a subverter a pressuposição de normalidade social assentada num status quo dado, de abusos e preconceitos consentidos?
Na zona lindeira entre representação e marginalidade coletiva - onde se discutiria no passado a argüida "subversão" do PT - um retorno ao tecido da comunidade de base, berço também da militância da legenda, pode se transformar em nova mediação criadora. Um governo petista evitaria toda a polarização rígida em que o sistema hoje se contrapõe à instituição e à sociedade e as estabiliza pela coerção, mais do que por um novo vivificar dos movimentos sociais.
Nesta prospectiva imediata de um Ministério Lula caberia a pergunta de como, pela própria demora, ou pelo atraso da chegada lá, a mudança ainda se declina na linguagem das reformas das instituições, no discurso clássico da alteração de seus estatutos ou normas. Até onde se torna novamente audível, uma expectativa como a da reforma agrária ou de seu par engessado, a dita reforma urbana, como vem de relembrar João Batista Stédile? A se atentar ao imo do novo tempo de espera, não há que responder pelo perfil antigo desses desenhos de mudança.
Neles, afinal, as situações de injustiça coletiva, no corte tão propício as elites dominantes e imutáveis, se definiam por um desejo do novo só abstratamente definido. É o caso das aspirações à distribuição de renda, fora do quadro objetivo de tensões onde, afinal, vige a regra da social democracia, subtraída às isonomias da legalidade e da justiça no talhe kantiano.
Ou seja, cabe a um governo de mudança, de fato, tratar desigualmente os desiguais na via possível e única em que o estado geral de um sistema social se logre pelo caminho da compensação. Não pelas franquias tão indiscriminadas quanto ideais à toda capacitação à cidadania e, por ela, à fruição da vida coletiva.
De toda a forma, entretanto, a forra da esperança não exclui o passivo de um excesso de espera, um coeficiente, entre anárquico e violento, da expressão de um povo desapontado, que mais se exceda, tanto mais cresceu a auto-estima no seu imaginário coletivo. Um novo capital simbólico é tarefa prioritaríssima e, mais que tudo, a de sua transação imediata com o nível da impaciência coletiva, por mais que ineditamente disciplinado. Impõe-se saber prometer para, inclusive, assumir o ônus do primeiro momento de decepção e sacrifício que o governo diferente acarretará.
Cabível o anúncio dos milhões de empregos, mas tão-só e, ao mesmo tempo, enquanto se conserte a viabilidade do horizonte anunciado e as transações da espera impõem a exemplificação de como se chega lá, e toda clareza entre o que se atinja agora para viabilizá-lo adiante.
É pelo mesmo caminho que levou a vitória de Lula que qualquer lua-de-mel com o novo regime ou, pelo menos, a dita trégua dos 100, vão requerer o aguçamento de sua crescente crítica à esquerda. A desmesura da vitória tem um efeito primordial sobre a ortodoxia extrema da legenda. Tão grande é o êxito do pragmatismo que valeria a pena dar trégua, esperar a vigência emergente da realidade política brasileira, para extrair uma nova problemática? Ou faz-se mister, desde agora, agudizar a crítica, para que não seja um PT irreconhecível o ganhador do Planalto?
O PT não pode desprezar a reserva de negociação que ampliou, trazendo-a à balança de precisão da utopia, com todas as gamas da reivindicação do purismo partidário à abertura de todos os rumos que autoriza a avalanche do êxito. A legenda veio às urnas, na proposta entre idealismo e concessão, ao arrepio de todas as campanhas anteriores e será objeto de uma experiência única, de conviviabilidade entre a voz de um querer político fundador e o marco de concessão que impõe a sua vigência lograda como sistema de poder.
Nenhuma outra organização política brasileira está, pois, tão preparada para transacionar com a sua esquerda ou, sobretudo, reconhecer "o seu a seu dono", no que é a cobrança abstrata de princípios para torná-los possíveis ao comando. É porque soube manter toda a dinâmica de uma aspiração social emergente, que a eleição de Lula se transformou em opção, com todas as implicações que esta escolha traz ao palco eleitoral.
Diante da abertura de portas do novo Palácio, e de todo o processamento diferente da sua espera, não haverá "sem-terra" ou "sem-teto" que possa abalar o regime a golpes do aríete de uma impaciência simplesmente acumulada, ou de súbito desencantamento com quem, no caminho dessas quatro eleições, sabe da trilha diferente.
Jornal do Commercio (RJ) 13/12/2002