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O segundo da sobrevivência

 

A discussão da violência não pode ficar no âmbito geral dos desequilíbrios sociais e econômicos das nossas megalópoles. Deparamos um quadro específico do Rio de Janeiro que não só agudiza o problema, mas exige uma consciência carioca, quase que como o das velhas “defesas passivas”, nas situações de calamidade de guerra e bombardeio. A banalidade da morte é o reconhecimento atroz deste estado de fato, que grita por uma cultura da sobrevivência, que ainda não chegou ao nível desta nossa cidadania permanentemente ameaçada.


Nosso horror nasce, de saída, desta inserção do morro na cidade, e junto aos centros urbanos, num contraste com qualquer outra mega cidade brasileira. E é o que, de imediato, aponta a zonas de risco extremo, que ainda não estão na geografia da segurança básica do carioca. Área nobre por excelência, como a Tijuca, se vê atravessada por favelas, sob rigoroso controle do tráfico e à obediência por terror, cega aos donos do pedaço.


Não é só atentar ao enlace perverso do Borel, da Formiga ou dos Macacos, estabelecendo pontos de fuga quase imediata, para os assaltos e à chegada ao páramo da impunidade. Mas é, sobretudo, o entrecruzar dessas gangues que amplia os morticínios pelas suas saraivadas, independentemente do assalto direto às populações, que vivem nas cunhas entre as trincheiras do narcotráfico.


A morte da secretária Maria Emília na semana passada levou à exasperação do perigo desses alçapões da morte. A repetição desses horrores obriga ao mesmo tempo a uma passagem em câmara lenta do rito dessas agressões, e de como elas, ao mesmo tempo, devem ensinar ao cidadão uma ética elementar de sobrevivência, sobretudo diante do segundo sem volta, da arma apontada à sua têmpora. A forte hierarquia dos morros e do interesse do tráfico estabelece, ao mesmo tempo, uma franquia do assalto permitido, e do roubo largado aos níveis dos facínoras menores, por sua vez submetidos à proteção ou ao fuzilamento pelos donos das gangues.


Em zonas como a Tijuca o automóvel não é o primeiro objetivo desses assaltos, mas, via de regra, o instrumento de escape a atentados anteriores. Existiria uma saturação de mercado para esse tipo de “commodity”, tanto quanto à categoria dos “soldados” e dos bandidos menores é deixado, como botim, o roubo dos objetos dos veículos, dos tesouros imaginados nos seus porta-luvas, mas, sobretudo, os pertences pessoais das vítimas e, sobretudo, prêmio maior, a bolsa feminina.


O assaltante, via de regra drogado, prevê o furto imediato e sem resistência e o tiro à queima roupa como sanção pela resistência do lesado. Maria Emília morreu pelo gesto instintivo de segurar a bolsa, não a largando ao bandido, e como que o repelindo. A educação para a sobrevivência neste instante entre a vida e a morte, resvala tragicamente pelo que pensam os assaltados estar em jogo, e achar que a presa é o veículo e não o recheio da bolsa. Não temos consciência desta cultura do roubo no banditismo carioca, nem das hierarquias em que é permitido ao bandido roubar, sancionar ou não com o tiro no instante o não cumprimento da regra do jogo pela sua vítima. A morte banalizada pode ser o horror final do roubo barato que é permitido ao aparente ladrão de automóvel. O estado latente de revolta da população fluminense vai repercutir no abate da consciência de impunidade dos nossos facínoras. Aí está o recomeço do debate sobre crime hediondo, a considerar como agravante o assalto por drogado e não como excludente pelo clássico argumento da privação de sentidos. Mas é, sobretudo, a responsabilização penal do menor que entra na linha de reforço da barreira legal ao despropósito da violência urbana.


Tanto os “aviões” e soldados do tráfico são recrutados entre adolescentes ou quase crianças, tanto se reforça essa exigência na sua responsabilização, tanto roubam e atiram, num quadro do crime organizado. Só tem aumentado o registro de assassinos “de menor” em condenações frouxas, e seu rápido retorno ao terreno do delito. A exacerbação da violência carioca reclama diante da nossa opinião pública, cauterizada entre o medo e o cinismo, do que é o nosso espaço público, diante do Estado organizadíssimo, em que se transformou a favela, pelo importe do negócio do narcotráfico e pela disciplina da sua organização.


Deparamos hoje um aparelho policial que vai além das limitações da máquina no dizer a que veio, neste confronto. Mas o prisioneiro que faça, muitas vezes, escapou da morte imediata, pela gangue que justiça a sua imperícia – neste mercado da banalidade do tiro, e do segundo sem negociação de sobrevivência.


Jornal do Commercio (RJ) 11/4/2008