Estes meados de 2004 vêm revelando características inéditas de extrema instabilidade, na definição dos cálculos políticos a longo prazo, a partir do próximo pleito municipal. Aí estão, de saída, estas variações do Ibope de, em menos de mês, um pulo de 10% de vantagem de Serra sobre Maluf e Marta, esta última já a perder do contendor clássico na Paulicéia. São subidas e descidas a ganhar já um efeito perverso no saber-se até onde a quebra da prefeita impacta o presidente. Ou de se a demora na arrancada do espetáculo, prometido pelo Governo, começa a derrubar as presunções tranqüilas de um ano atrás, quanto a um octonato petista. É possível que a dúvida crescente quanto ao pacto dos futuros alcaides com o homem do Planalto atrase-se ainda face ao espanto desses altos e baixos em São Paulo, vistos por tantos como o termômetro definitivo do sucesso de Lula.
Também chovem as explicações claramente apressadas sobre este impasse, atribuindo ao efeito imediato dos programas eleitorais - a se perder no depois de amanhã - ou a valoração da vaia de Lula junto ao féretro de Leonel Brizola. Neste caso, não há como extrapolar para o País fenômeno tão típico da moela carioca, no arraigado da vinculação ao ex-governador, em verdadeiro fetiche de adesão, invariável a tempos e infortúnios. E, sobretudo, desconectados de qualquer estratégia a longo prazo das esquerdas no País. Mas de toda forma o novo travo de prudência quanto ao futuro petista começa a desamarrar as alianças, que permitiram ao presente Governo a obra-prima de uma maioria parlamentar inédita nas últimas décadas no País. Ela voltou ainda a se confirmar, em toda a força da costura de benesses assegurada pelo Planalto, expressa na centena de votos que confirmou o salário-mínimo e aplastou, de vez, a marotice eleitoreira do Senado e sua rebeldia de doze sufrágios.
A soldagem desses pactos entra no ano eleitoral e refaz as previsões de fortuna. Nas relações a longo prazo com o Governo, o clientelismo começa a trabalhar numa lealdade a duas dimensões. Os ditos partidaços negociam o apoio continuado no Congresso mas vão à luta de seu interesse imediato no município. Desmontou-se, até certo ponto, a primeira estratégia de Lula, de aliar-se solidamente com o PMDB de modo a garantir-lhe na rinha local uma vantagem de vez sobre o PFL. Desequilibrar-se-ia por aí a clássica hegemonia das legendas, herdeiras do mais de meio século da dicotomia PSD-UDN que regeu a pós-era Vargas. O PT ficou como árbitro desta mudança sem precisar disputar palmo a palmo este chão do velho Brasil e guardando-se para o comando da modernização e a disputa crítica das megalópoles.
Roberto Jefferson deu, agora, a Lula, com o seu PTB, a colher mais prestativa para o condimento de outras receitas situacionistas escapando da dicotomia dos ditos partidaços, desejosos de fugir ao fechamento das contas locais com o PT. A composição desses grupos políticos, via de regra, confronta posições rígidas de apoio, e, portanto, de oposição, em que se cantonaram nos feudos locais. Seus compadrios e coronéis vivem da rotação desse desafio, em dinâmica muitas vezes insensível às cartas federais. Mas com representação comparável, nas suas 52 vozes na Câmara, às grandes legendas, o PTB pode agora, dentro de uma conduta sem reservas, nem hesitações em benefício do Planalto ser um desestabilizador dos cálculos de prudência peemedebista. Assume o lugar de primeiro partido coligado, em parelha fácil de vencer, com o PL do vice-presidente.
Quebra a legenda de Roberto Jefferson a escrita da espera, fazendo o jogo do PT, sem lhe obrigar a pôr a mão no fogo do plebiscito. De toda forma preencheu, com acuidade, este papel que o Planalto reservava ao partido do dr. Ulysses, na integração do voto das prefeituras à política nacional pelo multiplicador que representaria, em futuro próximo, um mesmo registro e sincronização de lealdades. Começaria, por aí mesmo, uma mudança de qualidade das legendas clientelísticas, resultante de uma uniformidade de conduta dos seus níveis municipais, estaduais e federais. É o que atualmente faz do PT a única legenda efetivamente moderna do País, no quadro de uma disciplina em bloco, e de rumo único da sua decisão política. Enfrentando a tônica de que o jogo político municipal está sempre preso a um estrito dilema de facções e rivalidades, abre-se a expectativa nos jogos de aliança de que se dois é bom, três não é demais, ao contrário do provérbio popular. Poderia até fazer a diferença, na medida em que um partido, ainda, de pouca presença municipal como o PT traga agora o PTB para abrir a cunha nesta rinha - e pagando a quem se deve - a mudança de peso na balança do poder local.
Na sua proverbial vocação fisiológica desde o Governo Collor, o PTB aperfeiçoou o melhor oportunismo histórico, confiando no efeito, a longo prazo do passinho curto, e já. A agenda clientelística sempre tem hora e espaço, retruca e rumina o aliado peemedebista, saído do ninho. De repente, não mais que de repente, o day after, agora, no Planalto é só do PTB.
Jornal do Commercio (RJ) 9/7/2004