A massa de reuniões em Brasília nestes últimos dias nos tirou de vez do anticlímax para perguntarmos do sentido dessa extrema movimentação presidencial. É difícil constatar-se maior presença política no poder, seus teatros e seus bastidores, que a de Lula, movimentando todos os gonzos do mando. E, sobretudo, e ao contrário de seus antecessores, guardando para o foro íntimo, e para o desfecho da hora, a condução da nossa máquina pública, no segundo tempo do mandato. O presidente impôs a prestação de contas dos ministros sem cadeira cativa, fora da área econômico-financeira, e cobrou disciplina indiscutível do PT, para a rearrumação das maiorias, com vistas à reeleição. A força federal das legendas não se compromete com os resultados municipais, na sua soma algébrica de auto-anulação, de tantas combinazzioni que não saem do terreiro das prefeituras. Afinal, após o pleito, não há alcaide que não se dobre ao petitório federal subseqüente. A osmose política, perdida toda veleidade programática, torna prisioneiros do sistema legendas como a do PTB ou PL. E ao sinalizar agora um Ministério à Roseana Sarney, Lula sabe por que extremo segura o partido já, de fato, quebrado pelo conúbio deste primeiro biênio com o PMDB. Na verdade, na proposta do Planalto não há coalizões, mas amálgamas. Não se salta fora, como se entrou na amplitude do pacto oferecido pelo presidente, nos cargos, mimos e funções, em que se abancaram os velhos partidaços, Lula propõe-se a satisfazer verdadeiras expectativas sociais, e dá outra ambição a seus parceiros que o mero ''toma lá, dá cá'' do primeiro pacote de prendas que esperaram do poder. Há mais que o convescote dos cargos de sempre. As velhas siglas podem se tornar sócias de uma negociação substantiva de mudança.
O debate que apenas começa, da alteração do estatuto universitário brasileiro - característico desta segunda etapa de densificação da proposta do Planalto - já põe em questão controles novos sobre a presença maciçamente majoritária, hoje, do setor privado que detém 80% da oferta da nossa educação superior. Um ideário de ensino público no terceiro grau enfrenta um fato consumado. Significativamente o governo reforça o teor programático, contra o realismo político que reclama toda verdadeira prática de transformação social. Trata-se de típica estratégia, do segundo tempo, quando o reforço ideológico - para depois transigir-se - compensa o descolorido do meio de mandato, a braços com a sinalização de rumos para sair dos baixios da estabilização econômico-financeira. A verdadeira prática da mudança vai a uma engrenagem de negociações muitas vezes silenciosa, deixadas na sombra, exatamente, graças ao alarde do discurso, da fidelidade de princípios e da pureza doutrinária.
O que conta é uma ruptura de inércia, no desbanque do status quo, como efeito do fogo posto no rigor da ortodoxia. Exaspera-se o confronto, para voltar à transigência que não nos deixa, entretanto, no ponto de partida. O que importa, sobretudo, é vencer o assédio em que, no contra-choque previsível desse mesmo status quo, procura-se cristalizar o modelo liberal, acolhido como estrita tática. Lessa quis dar à sua saída do BNDES a marca da advertência, justamente, desta escalada tardia do neoliberalismo, passado a modelo triunfante. Mantega, aí está, de logo garantindo que os fundos de empréstimo genuinamente sociais do FAT não passarão ao mercado geral dos dinheiros e seus juros.
A boa paciência é a coveira da contradição e o governo começa a tirar partido dos resultados, para ficarem, dos ganhos econômico-financeiros que garantiram, agora, ao país, estes 36% de superávit no balanço de pagamentos externos e estes 7.8% de novas carteiras de trabalho assinadas frente à 2003. É o pouco, mas seguro, do arranco. Afinal, saímos do vai-e-vem dos ganhos aparentes e, de vez, nem tudo é conjuntura. Desgarramo-nos deste castigo de Sísifo no perde-e-ganha com a economia global.
Delineiam-se os trunfos, para uma mudança de trajetória, no rumo que soma outros haveres. Tanto como a descompressão venceu o status quo da ditadura, sai-se, agora, da inércia econômico-financeira, de maneira lenta, gradual e segura. O governo já teve o castigo da impopularidade, que não contamina o presidente. Nem, nesta especialíssima conjugação entre a impaciência e a esperança, o verdadeiro êxito entra em contagem regressiva. Entre espantos e retrocessos, pseudos-avanços e boas novas, noves-fora, Lula.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 01/12/2004