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O primeiro dever de Lula

 

Enganam-se as Cassandras a procurar em episódios como o de Waldomiro, o começo da perda de encanto do Governo. A matéria-prima do enlevo com o regime não se atrita pelas escaramuças continuadas, onde é a retranca do status quo que aparece e não o despontar do inédito de agora; do que realmente sensibiliza o que antigamente se chamaria do povão; do que responde por esta sensação de que se virou a página do País que estava aí. São outras as expectativas do enorme estrato de população que pela primeira vez se vê no poder, e quer o recado material de que o País mudou. Do sucesso do Fome Zero à transferência das águas da bacia do S. Francisco, fertilizando o Nordeste, ao sucesso da Bolsa-Escola. A busca destes resultados vem de par com a rememoração, a cada momento gratificante, da investidura de Lula, e as iniciativas que a reflitam, na expectativa de um outro Brasil, de outra exigência, que a da reiteração do imperativo ético nas relações de poder.


O universo do atual Governo é o da repartição deste imaginário, e do que seja preencher-lhe as expectativas num quadro diferente da opinião pública de sempre, seus escândalos sabidos, seus exorcismos, seu “tudo bem”, ao final. É o do País, em que a moralidade da ação do Estado concerne à coibição do mau trato da coisa pública, vista como um patrimônio de que todos possam fruir. Não a do País enterrado na marginalidade, que precisa de verdadeiros trabalhos de Hércules - mas pode intuí-los pela sinalização do presidente de que chegará lá.


Não há para Lula que tratar do incidente do assessor de Dirceu, na mesma pauta e no mesmo formato de dissabores anteriores, da corrupção palaciana numa mera extensão do já estabelecido. Mas, sobretudo, entender que o que incumbe ao presidente é reduzir o evento lamentável à escala da nova perspectiva, punindo os culpados, por certo, mas sem extrapolá-lo para o espaço das verdadeiras cobranças do Governo. O que começa tem muito mais a ver com a continuação da festa no céu, experimentada de forma tão inédita pela boda da posse, a continuar pela alargadíssima lua-de-mel, e reclama esse protagonismo gigante do símbolo, e do atletismo descomunal da presença de Lula no horizonte do País.


O certo ou o errado das pegadas do presidente se dissocia do cenário das denúncias, das indignações verberantes e das catarses a prazo das Comissões de Inquérito. O imaginário à espera de Lula tem uma gambiarra toda inaugural, que não suporta o atraso das suas promessas, em bem de todo o ritual da execução de Waldomiro e seus cerimoniais exaustos. A mostra do caminho diferente, do cortar o mal pela raiz, em vez de permanecer no castigo do corrupto se evidenciou na suspensão dos bingos, fonte do dinheiro indigitado da corrupção eleitoral.


Acautelou-se, por aí, um novo desfecho. Banindo sumariamente aquela jogatina deu-se o Governo à retórica brutal do passar adiante, e manifestar o recado implícito do saber o que importa, já e logo. As diversas tentativas do clássico abafamento do escândalo Waldomiro, de um vício cediço foge à dimensão real do julgamento e do placet popular de fundo outorgados ao Governo, bem para lá de qualquer cratera de decepção que revele o fato de mais um corrupto, ou a saineta de seu castigo.


O escândalo do superassessor parlamentar estoura em palco miniaturizado pelo nível de espera real e, sobretudo, de satisfação ainda a se experimentar do Brasil desmesurado que se reconheceu na eleição de Lula. O que não cabe é amiudar-se a verdadeira agenda do Planalto interditando-se o ver-se adiante de incidente. Não seria outra, aliás, a esperança do País velho e da oposição de fresco, como se lograsse fazer voltar à tona - e com efeito sobre as próximas eleições municipais - uma querela exausta frente ao que aguarda o eleitorado, que fez a diferença. Mas por quanto tempo esperará, apoiado na extraordinária figuração simbólica, que é a de Lula, e de que só o presidente detém o sucesso e seu segredo?


A vigência nova da esperança brasileira pode até, contra toda a expectativa do purismo político, gozar desses bônus de solidez e confiança. Como utilizará, de toda a forma o Planalto, essa sobrevantagem que intui, mas cujos limites não pode balizar? Desde agora, de toda forma, mostra-se absolutamente decidido a não se contaminar pelos seus cerimoniais, de averiguação e castigo.


O novo, repita-se, no caso, não será, comprovada a culpabilidade, passar-se a exemplaridade das penas e seu escarmento. Não é um PT justiceiro ou vingador que está no enredo do imaginário popular, tal como se repetisse mimeticamente os cenários esperados de ameaça, comoção nacional, trituração burocrática dos inquéritos, apaziguamento subseqüente e desmemoria final dos arquivos, como esperado pelo Brasil oficial e sua opinião pública.


O mesmo PT que soube liberar-se do seu radicalismo utópico em fins de 2003, entende o jogo perverso que pode representar para as suas prioridades de consciência coletiva - a preocupação com o contaminar-se, ou não, como a praga do regime das elites. Não de que esta não possa atingi-lo, mas sim de compreender que não é por esta pecha que se vulnera, de fato, o fundo da expectativa popular, no roldão que a trouxe ao poder.


E a ameaça não vem da vaga moralista, nem do quanto pode sobrepor-se a da verdadeira lógica da espera do País. Demoradas aquelas medidas, e enterrado o partido em enredo que não é o do seu recado, pode demorar - e, aí, sim, de maneira irrecuperável - no plantar as estacas do novo horizonte brasileiro. Ou do que só pode ser espetáculo, na intuição do futuro de Lula, mesmo não entre em cena, de imediato, o crescimento do País.


O que se tornaria mortal agora é travar-se o que pede a história profunda do País começada com a eleição de Lula, abrindo-se trincheiras no incidente Waldomiro, emprestando-lhe todo o portento dentro das contendas conhecidas e seus esquecimentos de rigor. Mais que nunca o presidente, na solidão do Alvorada, está à frente, com o capital que é só seu, na intuição para além até das razões de Estado no responder a esse encontro com o Brasil de fundo, a que emprestou espelho e história.


 


Jornal do Commercio (RJ) 19/3/2004