O começo do segundo tempo de Lula torna bem clara a noção do caminho à frente e da importância de uma imantação das bases, para o ganho de um segundo mandato. E de, por aí mesmo, acreditar-se numa substantiva política de mudança. Não é outro o ferrete efetivo da esperança do Brasil do outro lado. Um propósito efetivo de transformação continua o impulso de chegada ao poder, nascido do mais fundo do inconsciente social dos destituídos, a explicar a sua inédita paciência com o deslanche de um governo como o atual.
Os resultados das contas da estabilidade aí estão. Do ganho do superávit primário tranqüilo ao percentual dos 5% de aumento do PNB e, sobretudo, ao índice de todas as apostas de sucesso: a relação entre este mesmo PNB e a dívida externa, baixando do marco crucial dos 56%. O ministro Berzoini pôde inclusive dar-nos, ao fim de 2004, a garantia, de vez, do aumento formal dos empregos, a já alcançar um acréscimo de 103 mil trabalhadores em novembro. O mais significativo entretanto é toda a infraestrutura de apoio financeiro e creditício que assegura um resultado para além do meramente tópico, ou esporádico, nessas boas cifras. Deparamos a expansão do micro-crédito para a agricultura familiar, habitação e o agronegócio, e o estímulo à transformação em poupança produtiva, das disponibilidades previdenciárias em créditos consignados sobre a folha de salários.
Por força, a percepção destes resultados demora, mas com estes primeiros trunfos pode o governo retomar o delineio original do seu ideário e o protagonizar, na luta pelo terceiro posto da República com a proposta do nome do PT para a presidência da Câmara Federal.
A indicação de Greenhalgh, que teve a concordância final e disciplinada das chefias mais aguerridas do partido, a começar pelo Professor Luizinho, seu líder naquele plenário, reafirma a associação entre o avanço do Brasil marginalizado e a luta pelos direitos humanos, ligada pelo deputado paulista à defesa intransigente dos Sem-terra, à evocação de epopéias como a de Carajás, no quadro ainda da repressão bruta, em que a injustiça social mantinha-se tranqüilamente de braço com o status quo do país. É o que se reevoca com a candidatura áspera, contundente de um petista primordial e na conjugação dos esforços do presidente e de José Genoíno. O candidato enfrentará o risco assumido pelo governo, de ampliação da sua frente política, que possibilitou as primeiras reformas da previdência e tributária, mantendo, nas suas formações, partidos clássicos do clientelismo e do convescote orçamentário. Depara agora a sua insubordinação, pelo apetite corporativo da Casa, que volta aos seus instintos, senta praça num baixo clero da Câmara, independente de suas facções ou denominadores partidários.
O alastrar da candidatura Virgílio Guimarães exprime o contágio, no partido de Lula, pelo botim de cargos, aumentos, viagens, bonanças, que caracterizam a fruição do poder, na caricatura que o devolve, sempre, à desconfiança popular, para o final amadurecimento democrático. A excepcional qualidade de João Paulo Cunha, o presidente que sai por imperativo constitucional, como que mantivera em suspenso o vaticínio final sobre uma eventual rendição do PT ao rega-bofe das benesses, e à sideração pelas miçangas, ensurdecido à cobrança, lá fora, do primeiro mandato diferente no Planalto.
Não resta dúvida de que a insubordinação de Virgílio Guimarães é já a da chamada do PT ao poço indistinto das maiorias intransitivas, na fruição das galas da Casa e de suas vantagens de cama e mesa no centro da Praça dos Três Poderes. Está o PT pagando o contrapreço, nada imprevisível, dos riscos que se impôs de trazer as clientelas. Greenhalgh é o freio dificílimo ao escape, pelo partido, do jogo de regras e prendas que garante o leilão do contendor. A convenção esplêndida e democraticíssima que precedeu à escolha do advogado dos Sem-terra se dera conta de que a campanha envolveria duas moedas e duas opções quanto ao modo de ser do Legislativo, reptando um governo que transigiu ao máximo, no demorar para o corte na carne das mudanças. O começo, a duras penas, da saída estrita performance da estabilidade vive o rasgo sem retorno, entre a maioria congressual, ainda permeada pela transformação social e um Legislativo profissionalizado pela benesse, sua traficância de ocasião, seu desfibramento histórico muito pior que o de qualquer pacto ostensivo de recuo ideológico, forçado pelo ninho quente dos quoruns situacionistas. A aposta das lideranças de fé do PT na vitória a Greenhalgh é a do basta na contagem regressiva da desfiguração parlamentar do partido. Por ela passa o acordo-limite das reformas pendentes, no modelo paulatino da mudança acolhido pela eleição triunfal de 2002. Mas a temperança com os aliados não se pode transformar numa vitória de Pirro frente ao que espera o país. A candidatura Greenhalgh é a da dureza das retomadas a tempo. E é por elas que desde agora poe-se em causa um novo mandato do presidente para dizer de fato e por inteiro a que veio.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 26/01/2005