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O Papa do dissenso democrático

 

O Papa acaba de realizar na Inglaterra viagem exemplar para dizer da sua lição sobre modernidade e secularização. Bento XVI, pouco dado a viagens, ao contrário de seu antecessor, tem buscado lugares canônicos para desenvolver esta visão contemporânea da Igreja, diante dos conflitos culturais emergentes da "guerra de religiões" ou, sobretudo, do confronto entre ciência e crença centrado na profunda discussão sobre o relativismo contemporâneo e os novos embates entre a fé e o conhecimento.


O recado histórico da ruptura do anglicanismo vai à soberania temporal dos credos, a ter no cenário democrático daquele país, hoje, condição exemplar de superação. O Papa reconhece a independência do espaço público, e vê na "praça", literalmente, uma presença religiosa. Bento XVI sustenta que a Igreja deva ter uma noção corretiva, no plano do Estado contemporâneo, e que a prática da fé possa contribuir a um bem comum, definitivamente reconhecido na sua universalidade laica.


O pontífice soube emprestar a maior casualidade ao contato reconhecido entre chefes religiosos com a rainha da Inglaterra. E o respeito à intrínseca diversidade de opinião permitiu a explosão de júbilo dessa minoria católica no país, em toda a força desempenada de sua expressão e no carinho pelo visitante.Confrontaria a força apregoada do dissenso à visita do Papa, levando às ruas,Hyde Park, 20 mil portadores de cartazes, como "No to the Pope", frente aos quase cem mil que abarrotaram as mesmas vias púbHcas, no apoio a Bento XVI. 


O discurso do primeiro-ministro Cameron foi ao empenho comum com o Vaticano, na defesa da paz, no imperativo da justiça social, mas sem referência, por exemplo, ao programa efetivo de relance, no âmbito das Nações Unidas, de uma luta contra a miséria universal. A presença do pontífice foi a um extremo inesperado, inclusive, da conciliação de um passado, frente à história pregressa, nesta força da sinceridade que só uma tradição democrática como a inglesa pode legitimar. Permitiu o melhor eco aos mea culpa pela pedofilia clerical, ou a candência das palavras do pastor. Mas ao lado do arrependimento pedir-se-ia a fala profética sobre as tensões emergentes de nosso tempo.


A palavra a se cobrar é já do avanço, não da coexistência entre credos cristãos, mas com o mundo islâmico, no quadro das "guerras de religião" e da explosão do terrorismo, levando os dias do pontificado de Bento XVI à nova "civilização do medo"; ao preocupante fundamentalismo americano, das direitas mais radicais do "Tea party", aos malthusianismos europeus, contra as migrações afro-asiáticas, a uma visão internacional, fora do Ocidente, de que os direitos humanos sejam uma nova ideologia da dominação.


O semblante da última benção de Bento XVI na Catedral de Birmingham foi o dos olhos percutentes, de quem sabe que o mundo à frente é o da aposta no encontro, de vez, da racionalidade, por sobre a tentação das cruzadas e do dito império dos justos e dos bons.


Jornal do Commercio (RJ), 1/10/2010