O mundo debruça-se sobre o desfecho da refrega Kerry-Bush. Mas a consciência da gravidade do dilema, no próprio país, vai só aos democratas, na tradição do comportamento político dos Estados Unidos. O eleitorado de quem já está na Casa Branca só se interessa em 30% pelo que se passa lá fora e acha que problemas de governo não devem perturbar as fortalezas domésticas. Mas tal quadro, por uma vez, se alterou sensivelmente: a guerra do Iraque virou o tópico crucial do debate e Bush logrou envolver pela ''civilização do medo'', o país a que oferece seu pulso firme para vencer todo novo espectro da queda das torres. São duas Américas a votar em opções diversas sobre o paradoxo de um superpoder, que paradoxalmente é visto, pelos republicanos, como permanentemente ameaçado. O armamento máximo não deixa o país menos frágil a um novo 11 de setembro, e o caminho da paz, na outra opção, passa por um desarme do terrorismo só logrável com o auxílio da Comunidade Internacional. Não há outra saída para vencer o preconceito de hostilidade entre as culturas, a que se volta a proposta Kerry. Mas sem iludir ninguém, quanto ao prazo desta erradicação de fundo, nem de como ela exigirá, de saída, um dispositivo militar inexorável de parte dos Estados Unidos e a sua decisão para comandá-lo.
De toda forma, o estrago da guerra de Bush, seus erros de estratégia e sua obsessão paranóica pelo abate de Saddam, como salienta o candidato democrático, envolvem uma verdadeira reconstrução política a largo prazo. E nem votando em Kerry os rapazes americanos voltam tão cedo de Bagdá. As ''guerras de Cem Anos'', a que não se furta o prognóstico do atual presidente, ficarão, entretanto, por conta de cravar-se o voto republicano nas urnas. Dará a vitória a Bush não quem pesou a alternativa dramática desta eleição, mas os que votam na inércia dos fatos consumados do inconsciente democrático dos Estados Unidos. Repete o voto o acomodado à magia do cargo e à sua infalibilidade, comandado por uma crença democrática, que baixou às raízes das instituições e à presunção de majestade e boa conduta inseparável, congenitamente, do exercício da Presidência. Não importa para esses eleitores não existirem armas de destruição de massa, como invocado para a invasão do Iraque.
É suficiente que Bush declare e insista que o perigo de Saddam seria o mesmo, com ou sem ogivas nucleares. E o presidente sabe o que faz. É contra esta fé sonâmbula que o voto democrata atinge a um furor cívico, no jogo da mobilização cidadã, para fazer a diferença num resultado que escape à fatalidade das idéias feitas e ao rótulo de salvação da República que se empresta a continuação da atual Presidência. As últimas três semanas assentaram, entretanto, o apólogo ou a moral de uma possível história com outro e verdadeiro happy end, ou feliz desfecho. Ou seja, a da undecimíssima hora, do valor nu da inteligência de Kerry, fazendo do ringue do debate o cenário decisivo para outro ''clímax''. Isto é, o de que existe claramente um melhor candidato e que sua vitória, de fato, fica a mercê da escolha livre de quem se expôs ao poder nu da convicção.
O legado de qualquer forma, desde já, do democrata ao pós 2 de novembro é o do país definitivamente partido que terá diante de si o contendor, se permanecer na Casa Branca. Não lhe faltará, claro, arrogância para administrá-lo, num governo que não deixou dúvidas sobre a economia de guerra permanente e em qualquer escala contra o terrorismo, a que os protagonistas do Salão Oval já prestaram inclusive o physique de role adequado, nos debates eleitorais somada a vinheta da truculência de Cheney aos esgares de Bush. Torna-se presunção de verdade em todo o país profundo, este que continua a votar em Bush sem pestanejar, por mais que o voto se queira um ato de razão e não de identidade ou simpatia liminares com o homem lá.
Não é outra a parábola, aliás, que neste momento contrapõe nas suas indicações de voto dois órgãos-chave da imprensa americana. O ''New York Times'' não só tomou partido ostensivo por Kerry, como se convenceu de que a escolha se faz entre um candidato com estatura de verdadeiro presidente, e um mero taifeiro da inércia do sistema. O ''Chicago Tribune'' vai, todo, ao voto dito patriótico, de sustento da Casa Branca sem elocubrar sobre a excelência da decisão. Não se muda um presidente num estado de guerra, nem se paga para ver, no mundo instalado do medo, o que seja outro caminho para pôr-lhe cobro. Fique-se no jogo já feito, pouco importa como se chegou lá, num quadro de ameaça nacional em que se confunde a justa resposta à agressão inominável com a eternização de uma síndrome de pânico. Nesta perspectiva, as torres continuam infinitamente a cair, em câmara lenta, sobre o futuro do país e se associar no bunker dos divisionismos americanos o medo de novo round do Al-Qaeda e o direito que lhe promete Bush de não olhar para fora de casa, refestelar-se no isolacionismo ferrenho, doméstico ou internacional.
Jornal do Brasil (RJ) 27/10/2004