Chegou atrasada à hora do julgamento a fotografia-chave de Saddam na entrada do tribunal: a do ex-presidente aguardando a retirada das correntes passadas pelas pernas, pela cintura estrangulada, e a travar-lhe os braços. Tratava-se, de saída, de opróbrio muito para além do castigo normal da imposição tão só das algemas - e abertas - durante toda a presença do acusado frente ao juiz. O lance esclarece mais do que toda a montanha de afirmações, ou dilúvio dos sites ou da ruminação de rua, o quanto se abre todo um novo estágio de afirmação do Iraque, após o começo da destranca do ferrolho americano. A volta à cena do ex-ditador é também da iniciativa para a discussão pública do pré e pós-invasão. O personagem-mor, pela sua estrita sobrevivência, agora agressiva, subverte os jogos feitos de um futuro exaustivamente determinado pelos Estados Unidos. O crescimento da guerrilha contra as forças americanas reforça-se no processo monstro, pela contradita à visão dos vencedores que passa agora pela decisão das novas autoridades, sem cortes, à mídia mundial.
As regras asseguram um terreno emergente de autonomia para que o Iraque se encontre consigo mesmo, e nas surpresas do debate público com Saddam se insurja ao script previsto pelo governo Bush. Até onde, sob a invocação de um legítimo julgamento, segundo as regras do Direito Internacional, o ex-ditador, passado ao castigo e à execução, se transforma num protagonista ativo de uma diferença de futuro, e de uma reinterpretação da memória recente do país e da opinião pública internacional que acompanhará o feito? As câmaras assentaram os espaços do momento histórico que começava. Das mãos soltas de Saddam passa-se já, no banco-tribuna dos réus, ao dedo em riste e ao vergaste dos acusadores. Inverte-se a iniciativa. Não é um ex-presidente, como quis corrigir o juiz, à primeira declaração da identidade do preso, mas quem se vê como o chefe soberano da nação invadida, que aponta para Bush como o criminoso, tanto quanto, a partir daí, faz do julgamento um espetáculo que não será mais o que comandem os seus captores.
O interrogatório vai a perguntas e respostas num mesmo nível onde, em pouco, o juiz passa à defensiva. Suas primeiras palavras, a bem da garantia do julgamento isento, são as do respeito à interlocução, ao informar ao detido de que é acusado. Saddam não será réu da construção de arsenais de armas maciças de destruição nem de comparsaria com o terrorismo da organização Al-Qaeda. A nota de culpa - que não mais se pode alterar segundo essas mesmas regras do processo - vai toda a fatos pregressos, a acusação de morticínios em série de inimigos, do abate das etnias curdas, dos extermínios sucessivos dos inimigos políticos, atingindo clãs xiitas do país. Não difere por aí das denúncias dos regimes ditatoriais de toda uma mesma faixa histórica, no xadrez político pós-descolonização no após-guerra de 45 no Oriente Médio e no mundo africano. Mas o Ocidente, por realpolitik, em casos idênticos virou a página do Burundi e de Uganda de Amim Dada. Seus autores não foram trazidos à barra da condenação internacional, ainda que, à época, sem o Tribunal de Haia, que hoje aguarda os assassinos mais recentes, da Libéria ou de Sierra Leoa. Nessa corte, no porte de um acusado-mor como Saddam, só se encontra Milosevic, a responder pelo massacre de Kosovo, mas que, pelo rumo tomado, após dois anos pelo julgamento, parece sair do fato consumado da execração universal, que fazia crer o momento de seu abate e captura em Belgrado.
Saddam deixou o uniforme de prisioneiro por um terno bege-chumbo da hora, à entrada dos cancelos. A camisa branca, num paramento ad hoc, como a simbolizar a imunidade, pelo menos transitória da pessoa, e garantia de vida até a sentença. Colin Powell, nem mais nem menos, reconheceu o direito de presunção de inocência, como requerem as regras de um Estado Universal de Direito, a que agora faz as suas juras a potência invasora, como exige a retórica de reiteração da democracia, deixada em Bagdá por Paul Bremer.
O exame do passado supõe o rigor das regras do processo do ex-presidente, frente à ordem internacional, a cujo império pretende voltar o próprio governo Bush, nos protestos já feitos à ONU e no discurso em que enfrentará a futura campanha eleitoral. A sessão inaugural da Corte de Bagdá ouviu a contradenúncia do ex-ditador, antecipando a avalanche de provas, prometidas pela massa de advogados já trazida ao pleito. Seu desenrolar imprevisível será o do próprio estado de espírito do país quanto ao caráter efetivo, de criminoso contra a humanidade, do acusado, ou de personagem, tão só, da instabilidade política crônica, por sobre os conflitos tribais e religiosos da área - por mais que intoleráveis - para a criação de um Estado nacional. Foi, de vez, a bandeira pré-Saddam, a içada na cidade, após a descida da americana, abandonada toda idéia de um novo pendão para o país.
O governo Bush paga agora pelo embaraço de não reconhecer a Corte Internacional de Haia e às suas portas depositar o incomodíssimo prisioneiro. Vivo, articulado, disposto à invectiva contra os seus captores, na experiência desse contraditório em que as instituições democráticas fazem, pela proclamada isenção do tribunal, sua introdução para ficar no país. De toda forma, e no que logrou nas suas primeiras horas, este Iraque é já refém de Saddam, se não quiser recair nos piores presságios do país de finge e do gabinete de opereta.
Jornal do Brasil (RJ) 14/7/2004