A segunda conferência "Latinidade e Herança Islâmica", organizada pela Academia da Latinidade e pela Universidade Candido Mendes, que vem de findar, no Rio de Janeiro, representou, na avaliação das organizações internacionais, o encontro de maior densidade, quanto à presença de scholars iranianos, no Ocidente. Contamos com especialistas em ciência política e relações internacionais das Universidades de Teerã, Behasti ou Azad, ao lado de peritos em línguas latinas, interessados em expandir, no país oriental, o conhecimento, especialmente, do espanhol.
Juntaram-se à delegação, chefiada pelo professor Mohammad Masjed Jamei, Diretor do Departamento de Cultura do Ministério das Relações Exteriores, estudiosos, radicados em Paris e em Toronto, como Tabatabai e Jahanbegloo, ampliando a visão pluralista da mensagem de Khatami e a busca dos horizontes do diálogo com o Ocidente, sobretudo, para esse tempo, que nunca mais será o mesmo, após 11 de setembro. Gianni Vattimo, Helio Jaguaribe, Mario Soares, Yann Richard, Alain Roussillon, Alain Touraine emprestaram o tom de vozes da primeira grandeza sobre a perspectiva latina, neste mundo saído de todas as convenções de uma cultura de paz, para enfrentar a luta contra o terrorismo, sem perder as dimensões das identidades dos povos em tempos de hegemonia.
Masjed Jamei insistiu na desradicalização da multiplicidade de enfoques, que envolve a visão contemporânea do Irã, desligada dos rótulos fáceis dos fundamentalismos. Mais ainda, o êxito do governo Khatami, cada vez mais, apóia-se em verdadeiros valores universais, para esse contato internacional, como seja o das eleições democráticas e diretas, que confirmaram o atual líder iraniano, à frente da República Islâmica, e lhe dão autoridade extrema, para estender a mão, na busca de uma entente que supere a "civilização do medo".
Contribuições, como a de Alain Roussillon, também a desmontar o rito dos estereótipos, levaram ao entendimento mais moderno do que seja a construção social dos atores, para esse mundo de confrontos hegemônicos, evidenciando o distinto e emergente papel da mulher, saída do espaço doméstico para o de uma singular atividade cívica e mesmo de desempenho majoritário nas universidades.
O debate, por força, para sair do convencional, avançaria tanto quanto a lição pós-moderna, que reconstrói as abordagens e procura desarmar as prevenções Islão-Ocidente, através do aprofundamento crítico feito por Vattimo, por exemplo, sobre "Secularização", ou de Mesjed Jamei, sobre o sentido mesmo da shariah, ou de Rémi Brague, inventariando os preconceitos de rejeição, entre os recíprocos e enraizados "espíritos de cruzada", que poriam em questão a hospitalidade islâmica, a ânsia de conversão ocidental, ou as reais condições de convivência, no passado, entre as três civilizações do livro.
É claro, entretanto, que, à sombra da iminência de uma guerra com o Iraque, o diálogo se remataria numa prospectiva das relações entre o Ocidente hegemônico e o Islão, que repudia o terrorismo e faz valer, ao mesmo tempo, a sua visão de um Estado religioso, na recepção que oferece à tecnologia ocidental, sem perder a alma de sua identidade.
No fulcro dos problemas, e tendo em vista a necessidade da construção de uma cultura da paz, a guerra contra o Al-Qaeda levanta a hipótese de um inimigo indiscriminado, tanto quanto, para dar-lhe combate, a denúncia das convenções reguladoras dos conflitos internacionais pela Convenção de Genebra. Tal situação repercute em todo Estatuto de Direitos Humanos, como recentemente lembrou Mary Robinson, diante das Nações Unidas, desde as condições mínimas de comunicação, preservação da integridade dos prisioneiros, até seu trato adequado nos cativeiros respectivos.
Implicam o horror da execução de Andrew Pearl, como as condições de detenção, sine die, e sem processo formado, em Guantanamo. Estar-se-ia diante da eventualidade de uma Guerra de "Cem Anos", por mais que a força do engenho militar americano, a partir das novas versões das star wars, tenha, objetivamente, condições de prometer intervenções feéricas e aplastantes, com a garantia de não trazer de volta aos Estados Unidos nenhum caixão de soldado americano.
A questão debatida é de se saber se o horror inominado da derrubada do W.T.C. implica a intolerabilidade ainda de uma agressão, no núcleo mesmo da potência ocidental, que não a teria ainda absorvido, num clima em que sobrenada a retaliação aberta, à busca de sua configuração definitiva.
Não se está mais diante de um talião cívico, mesmo porque a ameaça indiscriminada e imprevisível dos homens-bomba, a partir do conflito judaico-palestino, retirou dos Estados, e até das organizações revolucionárias e terroristas, a última faísca a fechar os circuitos de agressão e resposta no poço sem fundo de uma instabilidade perpétua. Para voltar-se, de fato, a uma entente, as populações dos Estados mais diretamente envolvidos, no Ocidente e no Oriente Médio, estão a clamar por uma mobilização das sociedades civis, para além da estrita expressão de seus governos. É o que se pressente, por exemplo, pela enorme tradição democrata pluralista e de cultura da diferença, e da ação afirmativa, em que se construiu a modernidade americana.
O apoio que as Nações Unidas vêm recebendo de parte da União Européia e das periferias, na busca de uma solução suasória, para o Iraque pode ser a abertura do caminho a que os Estados Unidos reveja a sua atitude internacional, como potência hegemônica, ainda frente à atrocidade inédita do 11 de setembro. Seu primeiro aniversário coincidiu com declarações internacionais dessas lideranças dos Estados Unidos, tal como, evidenciada por recentes declarações de Susan Sontag, entre nós, por exemplo, insistindo sobre a superação do choque e a necessidade de absorver-se o que Baudrillard chamou de "a ferida insuportável".
E, mais que nunca, é fundamental que, na grande tradição libertária dos Estados Unidos, as suas universidades, no protesto vital para a definitiva eliminação do racismo e o término da guerra do Vietnã, se transformem em focos desta retomada de um efetivo diálogo internacional. Mas o silêncio demora e o mundo se interroga. As torres caíram sobre o mundo todo das liberdades e do empenho essencial à democracia.
Ou seja, o de respeitar-se a diferença, a fim de vencer-se, de vez, os fundamentalismos, de parte a parte, que puderam ameaçar, pela retomada das guerras do extermínio purificador, o direito das minorias de não se verem espremidas contra a parede dos terrorismos e do suicídio serial dos homens-bomba. Estamos a pique de um morticínio que, no seu delírio ou seu martírio, suprimem até o sentido do recado, para tão-só assinalar a assinatura do desespero, em que o universo das stars wars não restaura, jamais, o mundo nascido do olhar do outro, desembuçado, na força do seu desarme.
Jornal do Commercio (RJ) 20/9/2002