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O inevitável bom senso cívico

 

Não tivemos, desde a "cristianização" do candidato governamental contra Vargas, eleição mais rebelde aos donos do poder e ao Brasil de todo o sempre, que a do próximo 6 de outubro. Domina a cena a proeza decisiva do primeiro partido moderno do País, ensejando ao PT a vitória com o sucesso pertinaz, de disciplina, consulta às bases e, sobretudo, capacidade de aglutinação de Lula. O que mais ressalta é o profundo amadurecimento, mais que do candidato, da própria consciência política brasileira. Alastrou-se, nesses dias sísmicos do País diante da telinha e do noticiário jornalístico, derrubando, de vez, o comício das turbas despejadas dos ônibus-monstro e dos candidatos-pretexto, para o sucesso das duplas sertanejas.


A soberania emergente de um eleitorado excedeu-se, até, no seu requinte, nos altos e baixos de candidaturas, implodidas para além do que possam o engenho e arte dos marqueteiros, ou ganhas pela passagem de uma confiabilidade por sua vez, também, escapada aos efeitos especiais. Escapou aos estúdios que criaram o museu de cera da presença de Serra, ou mostraram o psitacismo do saberete Ciro, aquém da presença que se impõe, convence e partilha.


O vencedor desta eleição parece ter sido o novo bom senso de fundo do País que ganhou esta nova percepção política, de que a melhor aposta para ganhar passa, necessariamente, pelo refino de um situacionismo. Este pode ser refugado por um inevitável cansaço do sistema, não obstante os seus êxitos.


É que, após uma reeleição, exaure-se a visão de horizontes da presidência repetida, tornam-se promíscuas as confianças de equipe, as forras secretas ou as bocas tortas, não obstante o acerto inicial do que disseram. Sobretudo num país que teima em afirmar-se como centro de suas decisões, vive a aceitação-rejeição dos mercados globais, e volta-se para o triunfo do verdadeiro capital social do país-continente e das oportunidades de um mercado interno que não se ofusque pelo facilitário do neoliberalismo, como ainda vem de lembrar o Nobel de Economia, Stieglitz, na reverência feita a Celso Furtado.


Ou seja, ao defensor-mor da procura do mercado interno possível, de relações de trocas modestas, mas geradoras de emprego; da competição tecnológica seletiva e, sobretudo, do que sejam os instrumentos, hoje, de uma nascente social democracia nas nações remanescentes no quadro do mundo-conjuntura. É aceleração interna de mudança de atitudes políticas, a que se transformou no grande capital, muitas vezes ainda mal pressentido, ganho pelo País com o extraordinário espetáculo eleitoral de 2002. Seu prêmio, de saída, de bandeja ou bônus, foi o enxotamento histórico, de vez, de fantasmas nada camaradas, do embuste do carisma de Collor ou Brizola, ou da chibata dos currais de votos, de Newton Cardoso.


Mas, em compensação, emergem os abstêmios mais consistentes, de um país alerta, na manifestação agressiva de seu desencanto com o que está aí, que não tem mais "bodes cheirosos" como alternativas de voto na urna eletrônica, e passam a cravar o nome de Enéas, o futuro deputado mais votado do Brasil em São Paulo, ou Garotinho, na nova embalagem família do populismo, do pseudo-evangelismo, como ração da esperança irrompido para todo o Brasil, a partir do sub-proletariado carioca.


O progresso da modernização política mesma, que indica os números das pesquisas finais - como sinalização implacável ao status quo - são, mais do que o apoio quase majoritário a Lula, o da desrupção dos partidos dos grotões, imprensados na opção confrangedora entre o que mande o genoma situacionista, ou a sua cirurgia rejuvenescedora, tal como se expuseram o PMDB com Serra, e o PFL, produzindo, nas suas retortas de Frankenstein estabanado, a Ciro Gomes.


Aí está, no cronômetro certo, do Juízo final de 6 de outubro, metade do PMDB passando às hostes do voto em Lula, e o PFL sem cabeça, não sabendo mais a que situacionismo da hora servir. Pode, até, a engordar as tribos eleitorais de Garotinho, para permitir-lhe aterrissar, ainda, no planeta devastado de surpresas de um segundo turno que não é, por uma vez, uma segunda eleição.


Para além da provável vitória do petista, o que sai da força dessas eleições democráticas; da agilidade do Superior Tribunal Eleitoral; da nítida e nova imparcialidade da mídia; do atilado da crítica política constante, é um novo complexo de forças nacionais, ainda surpreso, talvez, da rapidez com que o eleitorado encontrou, à última hora, o que os cientistas sociais chamam o horse sense da história. Expressão, aliás, tão querida ao presidente Fernando Henrique.


Quer dizer, que o País não perdeu o rumo provocado à especulação mais aventureira da gula de lucros dos capitais nebulosos do Brasil-agência global, e encontrando a maior solidez institucional para a expressão da nossa diferença. Refletindo a nova busca democrática de maiorias pelo PT, o País, caso se desate a sua vitória a 6 de outubro, viverá a mais criadora das transições do processo político brasileiro. A consciência política amadurecida vem cair no colo certo o que seja a mudança possível. O que desaparece é a bravata dos que aprenderam sempre a ganhar por último, e não rir na véspera.


E de outro profissionalismo que se inaugurará, de qualquer maneira, ganhe o ora candidato à frente, para mostrar de vez o que enfrentamos, sem retórica nem promessas, no segundo turno que ainda sobreviva no olho mecânico frente à primeira rodada contundente. O presidente sacrificou, inclusive, o jogo de todas as suas fichas em Serra, para dar ao Brasil mais este serviço. E fazer da arte da transição a captura a bem do futuro do estado de espírito, que acende uma vitória, e a mobilização frente ao País que está aí.


E que, de toda forma, não será mais o mesmo nas tomadas de consciência aluviais da última quinzena, contra Lula, ao prevaleceria uma aglutinação que só pode levantar uma bandeira pirata frente a um patrimônio de consciência duramente conquistada, pelas chances de uma esperança, para ficar, escapada, de vez, aos donos do poder.


 


Jornal do Commercio (RJ) 4/10/2002