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O Dr. Alceu, a abadessa e a posteridade

 

Faleceu em 1º de julho a madre abadessa Maria Teresa, da Ordem de São Bento, filha de Alceu Amoroso Lima. Não temos, talvez, na nossa história contemporânea, diálogo cultural entre duas gerações que nos tenha permitido o dia a dia único, por mais de meio século, do primeiro dos católicos brasileiros. A interlocução com a abadessa, na multiplicidade das anotações recíprocas, garante-nos, hoje, a reconstrução do pensamento de Tristão, na conversa diária com Lia, a sua Tuca. Dá-nos, na sua vastidão, a perplexidade e a coragem, ao mesmo tempo, com que se interroga sob os seus deveres da militância da fé, em todo esse longuíssimo périplo.Desde a conversão, por Dom Leme, na sequência da correspondência com Jackson de Figueiredo, em 1928, até se ter transformado no primeiro dos combatentes, pela imprensa, contra o governo militar.

É na angústia das suas próprias rupturas internas, em bem desta visão libertária dos direitos humanos, que Alceu romperá com Gustavo Corção, Gladstone Chaves de Mello e toda a chamada "linha dura" do antigo Centro Dom Vital, vinculados à ditadura e, mais do que isso, inclusive, à delação, como comunistas, de tantos membros da antiga JEC ou JUC, passados à confrontação da AP. Exatamente, nesses mesmos dias, chega-nos a obra de Renato Augusto Carneiro Júnior, Amor em Termos de Ressentimento, ou Alceu Amoroso Lima, Política e Resistência à Ditadura Militar, de 64, em ampla documentação da última etapa da vida de Tristão.
 
Nas quase quatro mil cartas - as Cartas do Pai - compiladas pela abadessa Maria Teresa e objeto, já, de edição pelo Instituto Moreira Sales, reconstitui-se por inteiro, como disse o filho Alceu, a profundidade do questionamento -da vida do pai, com sua entrega, "humilde, engraçado", no extraordinário coloquial de seu cotidiano. Nem precisaria, por aí mesmo, Alceu, de autobiografia nem de memórias, no repositório único, em que podemos mergulhar nas Cartas do Pai. A posteridade viria, por acréscimo, no que, à hora foi e continuou, por décadas, a conversação entre pai e filha, num trabalho editorial praticamente sem cortes, em que Tristão de Athayde abriu-se a Tuca, no dia a dia de sua alma. Dá conta do que via o escritor como o seu estilo solto, num pensamento que não precisava de qualquer atavio na sua espontaneidade, no correr das mãos de sua "cinzentinhá', a Parker 51, "como se tivesse vida própria". O "silêncio do povo", o "fanatismo" e, afinal, o "terrorismo cultural" são os artigos-chave frente à irrupção da ditadura, em 64, a que o pensador católico emprestou a "voz das injustiças sem voz".

E foi neste crescente desafio que Dr. Alceu só reforçou o diálogo com a abadessa, sempre à flor do novo passo, e transformou-se, reconhecido por gregos e troianos, no primeiro protagonista da resistência democrática no País.
 

Jornal do Commercio (RJ), 8/7/2011