As análises e abordagens do sistema político brasileiro, como de resto a avaliação que dele todos fazemos periodicamente, têm sempre por foco a conjuntura e por objetivo a justificativa de nossas próprias convicções. E, quaisquer que elas sejam, seguem o modelo tradicional que oscila entre o ufanismo de um lado e o pessimismo do outro.
O excesso de otimismo e o excesso de pessimismo constituem, a meu ver, os principais enganos e a maioria dos desenganos das avaliações de nosso sistema político. Por isso mesmo, é necessário considerá-lo com realismo. Uma dessas visões pode ser encontrada no livro Conciliação e reforma no Brasil, do historiador José Honório Rodrigues, publicado em 1964. Nele, o autor ressalta as extraordinárias conquistas de um povo escasso num vastíssimo território e afirma que “o divórcio entre o poder e a sociedade é a principal fonte de instabilidade política que se manifesta entre nós quase permanentemente, e não apenas nos momentos de transição do poder”, como afirmam alguns.
Acredito que essa instabilidade estrutural, que é reiterativa e resultado das crises por que periodicamente passamos, explica por que, nos últimos 200 anos, fomos o país que mais mudanças institucionais realizou. Transitamos pelas formas de Estado, passando de unitário a federativo. Mudamos a forma de governo, tendo experimentado o sistema monárquico e o republicano. Testamos por duas vezes tanto o parlamentarismo informal do Império, quanto o meramente formal da República. E persistimos no presidencialismo. Da mesma forma, tivemos no Império uma religião oficial do Estado, passando a Estado leigo na República, muito embora sejamos um país em que a proliferação de seitas e crenças religiosas se expandiu com extraordinária e inusitada velocidade nos últimos 30 ou 40 anos.
Explica, também, o porquê de ainda não havermos alcançado “o dom da eficiência”, a que aludiu um dos maiores historiadores do século passado, o inglês Arnold Toynbee, ao se referir ao Brasil na magistral obra Um estudo de história. Para o autor, o nosso país se transformaria numa potência no dia em que adquirisse o dom da eficiência. E, quando indagado sobre o significado que atribuía a essa expressão, deu-nos, durante sua visita à UnB, ainda nos primórdios de Brasília, um desconcertante exemplo, ao lembrar que em quatro séculos e meio depois de nossa entrada no mundo civilizado, só tínhamos sido capazes de explorar menos de 3% dos nossos recursos minerais conhecidos.
O que estamos assistindo hoje já estava diagnosticado há 40 anos pelo autor de Conciliação e reforma no Brasil. Em sua obra, o historiador carioca aponta a reforma política — “que significa basicamente reforma eleitoral” — como o recurso a que têm sempre recorrido as “elites dominantes” para correção de todos os nossos males, e reconhece que, “se o Executivo falhou, o Congresso e o Judiciário falharam muito mais na República, e não somente o Judiciário, como acreditou João Mangabeira”. Lembremos-nos que a agenda política que precedeu o movimento militar de 1964 se cingia às “reformas de base”. Exatamente aquelas com as quais nos defrontamos.
A trajetória da reforma política que se discute no Congresso há décadas e que começaria por se materializar com a implantação da cláusula de desempenho, que se consumaria na legislatura inaugurada em 1º de fevereiro, foi aprovada pelo Legislativo, sancionada pelo Executivo, mas frustrada pelo Judiciário, ao julgá-la incompatível com o pluralismo político e o princípio da igualdade assegurado pela Constituição. Por isso, parece-me cabível a pergunta: será o Brasil sem cláusula de desempenho mais democrático que países como a Alemanha, onde esse instituto político nasceu, ou a Áustria, a Dinamarca, a Suécia, a Noruega, que a acolheram ao lado de cerca de 40 outros países?
A conclusão plausível, a meu ver, é que, pelo menos nessa matéria, ao contrário do que afirmou o professor José Honório Rodrigues, não foi o Legislativo que faltou ao Brasil ou que falhou na tentativa de dar racionalidade ao debate político e dotar os poderes do Estado das condições necessárias para assegurar a governabilidade e garantir a estabilidade. Nosso sistema político sem dúvida pode ter dado causa a muitos enganos, mas temos que reconhecer que também tem sido vítima de muitos desenganos. Assim, nosso maior desafio continua ser o de aprimorá-lo, aperfeiçoá-lo e dar-lhe condições para atingirmos o dom da eficiência. O que estamos vendo, porém, é que toda tentativa de modernização do nosso sistema político, quando não esbarra em interesses difusos existentes no Congresso, não ultrapassa as barreiras que lhe impõe o Judiciário.
Jornal do Brasil (RJ) 4/5/2007