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O diálogo contra a Cruzada

 

Realiza-se neste começo de março o primeiro diálogo entre o Islã e o Ocidente, na resposta com que a Academia da Latinidade acolheu o pedido do presidente Khatami, para descompressão do fechamento das fronteiras da cabeça no mundo contemporâneo.


O convite do presidente do Irã antecipara-se, já, à catástrofe do 11 de setembro. É como se a premonição o acudisse, na saída do perigo dos fundamentalismos como espécie de segunda natureza de resistência, aos perigos tão mal pressentidos ainda da globalização vista como remate e desfecho do processo civilizatório. A sugestão de Kathami saía na lógica natural do sucesso único que obteve na reeleição maciça à Presidência da República. Apoiaram-no maciçamente os universitários no país em que, inclusive, os campus recebem hoje uma nítida maioria feminina, e o estudantado superior atinge a mais de 10% da população.


É um esforço marcado, sobretudo, por um apoio quase plebiscitário de uma nova geração que colhe o baby boom subseqüente à revolução de 79, e que maneja contra todo o enrijecimento das forças que derrubaram o xá, uma renovação indiscutível e, mais ainda, uma liderança no que seja a conciliação entre o Corão e a modernização. O fato de Teerã abrigar o capital da única teocracia do mundo não tem impedido um esforço pertinaz de abertura da Xariah, ou seja, do sistema normativo que rege o país, distinguindo nitidamente o que sejam os mandamentos divinos à palavra do profeta, e o trabalho de interpretação da regra sagrada à realidade, e as exigências objetivas que a interpretação do Corão implica ao cotidiano do país.


Sofisticação. Não se deu conta ainda o Ocidente da sofisticação desta reflexão que se coloca no pólo oposto dos fundamentalismos e que, na palavra de um de seus principais líderes religiosos, recrutado desde o começo da revolução para o assessoramento de Khomeyni, Abdel Karin Shouruz, mostra a clara distinção entre a modernização vinculada à própria coexistência mundial nos tempos de hoje, e a ocidentalização que quis implantar a ferro e fogo o período Pahlavi, pela que hoje se aparta a república islâmica em bem de um pluralismo cultural decidido, como premissa da coexistência neste mundo da dobra do milênio. A distinção é fundamental nestes tempos em que o núcleo do Ocidente levanta as pontes do diálogo, como conseqüência forçada da luta antiterrorista que, inclusive, não parece perder a sua força após a derrubada dos dispositivos aparentes do Al-Qaeda, e das praças guerreiras do Afeganistão.


O horror da decapitação de Daniel Pearl mostra num rito sacrificial sem retorno, o quanto as forças anti-Ocidente voltam-se contra o Paquistão e antecipam, entre os infiéis, a guerra contra os judeus, tomando por base a agudização extrema dos holocaustos israelense-palestinos. O diálogo de Teerã leva à intelectualidade do país uma condensação do espírito mesmo desta latinidade, como expressão mais nítida do pluralismo do Ocidente. O empenho de demarcar as diferenças e buscar as sendas do desarme de preconceitos faz-se pelo olho a olho e pelo contato aberto, numa conversa de mentalidades e de biografias, para buscar o universal, como modelador, de fato, do que possa ser uma visão globalizante do mundo que se deixe de reunir, tangida, tão só, pela civilização do medo.


Há um claro Ocidente latino, que configurou a história deste último milênio e que hoje deve mostrar a sua face na interlocução vária, afinal, com este Islã que responde por mais de 30% da humanidade e é o credo e a cultura que mais se expande nesta dobra do milênio. Não se identifica à cultura árabe, envolve a mega população indonésia, e tem no Irã a perspectiva maometana já exposta por mais de milênio e meio, a um corredor cultural fertilíssimo, com nítido poder arbitral sobre as dispersões no Oriente Médio, no norte africano, no Paquistão e no Sudeste asiático. O sucesso e o legado da revolução de Khomeyni só fazem crescer frente aos novos tempos de riscos de um confronto hegemônico, e de possível interlocução, de periferia a periferia, mediterrânea, em que a latinidade banhou também o primeiro arranque histórico islâmico.


Guerra. O diálogo que ora se inicia é um desarme da cabeça, neste a pique de chegar-se a uma "guerra de religiões", exasperando a densidade toda da coexistência de culturas, sem a qual a globalização termina por uma terraplanagem histórica.


Federico Mayor, o ex-diretor geral da Unesco, preside a Academia da Latinidade, que tem como vice-presidentes Mario Soares e Gaianni Vattimo, cabendo ao Brasil a sua Secretaria Geral. Edgar Morin, Alain Touraine ou Helio Jaguaribe fazem parte, também, desta primeira arribada em Teerã, que traz a presença de um ministro brasileiro, Francisco Weffort, após um intervalo de mais de 20 anos. O encontro é a primeira etapa de um largo programa de intercâmbio que deverá continuar com a presença de autoridades e universitários iranianos, na Universidade Candido Mendes, em outubro próximo, e no quadro da celebração do seu centenário. E em Paris, na Maison de Science de L'Homme, a seguir, em abril de 2003, deve-se procurar a síntese desta nova exploração do que seja a busca do outro e não da mimese que se tornou quase uma segunda natureza, na expansão ocidental. Ou seja, do espírito de cruzada, e da crença numa detenção exclusiva dos valores que possa portar o dito progresso do homem. A latinidade hoje é a parteira deste pluralismo, sob pena de encontrarmos um mundo em que a metástase do terrorismo pode nos levar às Guerras de Cem Anos: o que é própria dos conflitos de religião e da crença devastadora da verdade única dos Jihad, ou das noites de São Bartolomeu.


 


Jornal do Comércio (RJ) em 15/03/2002

Jornal do Comércio (RJ) em, 15/03/2002