Os mapas históricos do século XVIII espraiavam as denominações do extremo Norte do Continente, na declinação das cinco Guianas. Emoldurando as três européias, apareciam as, hoje, venezuelana e brasileira, esta do litoral do Oiapoque à Foz do Amazonas. Demoramos até hoje no responder a um desígnio antecipado pela geografia, no que fosse a nossa presença na área, de importância até agora relativa em nossa política externa. Só há a explorar aí uma profunda identidade cultural com as etnias africanas, a partir do Haiti - e em contraste com a latinidade espanhola - das Antilhas e, sobretudo, deste único Departamento francês assentado em terra firme do Novo Mundo. Mal conhecemos ainda esta Guiana, nem o foco de Caiena cujo símbolo de prestígio e modernização, inclusive, contrasta, por inteiro, com a velha imagem de uma região de banidos da pior espécie, no cativeiro da Ilha do Diabo que trancafiou, por 4 anos, o coronel Dreyfuss depois triunfalmente reabilitado de seu indigitado crime de traição à pátria.
A capital dista 40 quilômetros da base de lançamento dos satélites Ariadne, em Kouru, o registro quase freqüente do disparo, alerta para o avanço espacial da metrópole. E todo menino das escolas da capital pode pretender um ensino simultâneo com os seus colegas de Paris, tamanho o adiantamento da informatização e do ensino à distância. Respeitando as proporções, Caiena vive a mesma e clássica síndrome da imensidade do interior do nosso território, nesta baixíssima relação de 1.2 habitantes por km2. Todo o território não tem mais de 350 mil habitantes, e a capital, nos seus 70 mil, acomoda-se à fartura, num bairro de Copacabana.
O país, por outro lado, é um escrínio da mais completa mestiçagem trabalhada pela criatividade crioula, sua língua e sua mobilidade, ao lado das levas hindus e asiáticas migradas de Georgetown e Paramaribo, do influxo sírio libanês e, até, da antiga Indochina francesa, no transplante, por inteiro, no meio da selva de uma cidade do Laos e todos os seus habitantes, ao lado dos contingentes do Vietnam, chegados após a vitória de Ho-Chi-Min.
Os brasileiros avultam neste horizonte, atravessando a fronteira para a preda do garimpo no Sudeste, e compondo minoria ativa na capital. Pode-se reconhecê-los pela propagação do evangelismo das Assembléias de Deus ou da Universal, o que não lhes impede de participarem das crônicas policiais, como no último 18 de janeiro, abrindo a moda dos seqüestros em Caiena.
O governo Chirac só tem reforçado esta estratégia da presença francesa no continente, e para valer, em termos de efetiva integração regional, à margem do luxo dos centros balneários de Saint Barthes, da Guadalupe ou da Martinica. A universidade, protagonista do próprio símbolo da mudança tem como seu Reitor Jean Michel Blanquer, antigo Diretor Geral do Instituto de Estudos para a América Latina. Saiu da rua Saint Guillaume para dirigir o novo ramo da Universidade de Paris em Caiena, e a cada três semanas reúne-se com o Primeiro Ministro Raffarin, que tem, no encontro periódico com todos os reitores franceses, a marca do papel do ensino na França que dobrou o milênio. Jean Michel é, na verdade, o ministro regional da Educação francesa, tendo sob a sua responsabilidade 60 mil estudantes primários e secundários, e o milhar de universitários, agilmente repartidos entre as ciências exatas e as sociais. Dispõe de biblioteca exigente e, sobretudo, da continua integração com o informe mundial e especializado na metrópole, a eliminar todo o imaginário da distância, do exílio ou do degredo da agilíssima Caiena debruçada sobre o Caribe.
A potencialidade da Guiana parte já de um primeiro e rico repertório de etnias e culturas, em que se destaca a migração haitiana. Esparsa no território vazio, esta ocupação permite desenhar os focos ainda autônomos deste entrecruzar de uma identidade emergente. São os negros marrons da nascente do Maroni, em comunidades parecidas com os nossos quilombos de enraizamento comunitário, após a fuga das plantações incipientes. Em outro pólo os ameríndios respondem, aí, pela cultura bushiteng de indiscutível expressão pictórica e decorativa.
É no Sudeste, por outro lado, que está a penetração brasileira, com todas as marcas da violenta marginalidade de um faroeste, devotados ao garimpo ilegal e seu contrabando, e constituindo marca indiscutível de um enriquecimento áspero, de toda forma prometedor de um nítido desenvolvimento regional. O reimplante literal de cidade do Laos coloca os antigos indo-chineses no centro da mais profusa Hylea amazônica. Mas é a arribação contínua dos haitianos que assegura o povoamento mais denso e mestiçado da Guiana. Confrontam os estratos crioulos tradicionais. É grupo nacional que não entra em diáspora, só se reassocia, e vê no costão caribenho a porta para uma nova e primeira penetração continental de um povo fervilhante, mal contido na ilha desmunida, e castigada pela sua crônica instabilidade.
Caiena não tem arranha-céus, no desenho urbano condizente com a população, mas centros de informática, livrarias francesas, automóveis da última safra, e a busca da semelhança das ardósias parisienses no remate de zinco do arruamento. E, sobretudo, da Praça dos "Palmistes" que dá conta, na sua visibilidade cuidada, do que seja o centro da cidade.
Ainda continuamos sem tirar partido da condução naturalmente porosa da Hylea para o intercâmbio ou a penetração que insinuam os mapas da quinta Guiana.
A proximidade cultural, entretanto, desborda, no culto do C arnaval em Caiena. Só que em requinte competitivo com o nosso, modas e luxos ao refinamento veneziano. É uma festa de máscaras, de protocolos onde o prazer das identidades secretas e dos mistérios improvisados tomam o lugar da nossa imersão na música e na zoeira encantatória do bloco e do desfile.
A importância estratégica dada por Chirac à antiga zona do degredo e da danação só enfatiza o teor do que começa com uma agenda de pesquisas e seminários, de conhecimento e prospecção com universidades brasileiras, de Brasília ao Pará, e agora ao foro do Rio de Janeiro. Da configuração do que seja a frente garimpeira no Oiapoque à valorização comum da zona espacial, na concertação dos empenhos de Kurou e seus projéteis Arianes, à Alcântara dos nossos disparos pioneiros. E é numa agenda prospectiva que se pode compensar, no avanço dos trunfos tecnológicos, e sua partilha este nosso Pindorama, que deitou-se por demais, em berço esplêndido, à boca do Oiapoque.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 11/02/2005