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O bispo, pena, não é Gandhi

 

Dom Luiz Cappio, o bispo franciscano de Barra, na Bahia, iniciou há oito dias greve de fome para paralisar o projeto de inversão das águas do São Francisco, que ora começa em Cabrobó. Só bebe água do rio, mantém ainda inalteráveis os sinais orgânicos e sentado numa cadeira branca de plástico, abençoa os romeiros chegados ao seu pastor em trinta anos de presença abnegada junto à população ribeirinha.


Não começam por aí os Gandhis brasileiros. D. Luiz Cappio não vai falecer no seu jejum na tapera, a quatro quilômetros do seu rio, persevera na entrega, obediente ao que as democracias modernas reconhecem como a ação afirmativa. No seu próprio e comovente texto-testamento sabe que definhará, mas que, de vez, não fecha os olhos. A reanimação, as injeções, a recuperação alimentar de imediato vão devolve-lo à saúde, para alegria do seu rebanho. Disso tem noção o bispo, quando diz que a continuação da sua vida já vai para além da consciência que, na debilitação, tiver dos seus atos. É o sacrifício até certo ponto da melhor literatura dos atos-limite que permitem, no risco calculado, a concordância entre o protesto e a conservação dos valores básicos ao homem, que tem certamente à sua frente o bispo e o pastor de Jesus Cristo. Provavelmente, recuperado, tornará ao mesmo gesto e à mesma prática, e à mesma resposta a que se acostumará o povo de Deus à sua volta.


Não temos talvez na última década obra gigante mais debatida por um governo que a que ora começa em Cabrobó. E é difícil que algum canteiro de obra venha a ter maior poder de impacto, não só para a mudança efetiva de uma macro região, mas pelo próprio choque com que desbrava no imaginário do imobilismo crônico, um novo horizonte para o país. Já se o comparou na sua pedagogia da esperança, ao que foi o implante de Brasília no Planalto Central. A própria CNBB, inclusive, tem opinião dividida sobre o projeto, na clássica dificuldade de vislumbrar-se uma verdadeira iniciativa macro social de mudança e a perspectiva tópica, comovente, mas ainda frágil e assistencial do que seja esta alegada ''vitalização'' das margens do velho Chico. Toda verdadeira consideração ecológica se avalia pelo teor global da obra pretendida, a querer assentar um efetivo e novo ''micro clima'' para a região, ao lado da escala de irrigação aberta às terras perenemente madrastas do agreste ao seu lado. É o que repete a liberação do Ibama. Que dirão os outros bispos diante de uma iniciativa que, de fato, no semi-árido, vai fazer o ''sertão virar mar''? Ou, de vez, liberar-se da açudagem pobre e do capitalismo das secas? O rio, pelo fluxo de água desviada, não vai morrer. Nem o bispo.


É indiscutível o desconforto de muitos dos seus irmãos pastores, ao lado do entusiasmo de outros diante do gesto, divididos entre a força generosa e a disponibilidade por D. Cappio da própria vida. Só que o martírio cristão supõe o extermínio da existência em testemunho-limite, pela mão dos outros. Não há martírio suicida dentro da civilização cristã e, justamente, por este respeito elementar à vida - que está hoje no eixo das pregações de defesa do nascituro, chegando até, para alguns, à preservação dos fetos anacefálicos. Tem razão Ciro Gomes em dizer em nome de tantos brasileiros e católicos que o que faz D. Luiz Cappio, ''Deus está vendo''. E também a mídia, ao depararmos a lavagem dos pés do bispo, no flagrante que precisa ir ao novo testamento para encontrar imagem semelhante de convite, já, à devoção cristã.


Os pastores falam como profetas, não como decisores. E o projeto de transposição do São Francisco se situa num quadro de debate do efetivo bem comum, como ensina a doutrina social da Igreja, que não se mede por um particularismo regional, por mais que topicamente lancinante. O presidente Lula repete, em carta ao bispo santo, o convite a volta à explicação, ao entendimento, à indução possível da concordância. Mas a temeridade generosa do pastor, justamente em função de só clamores da cidade dos homens, e da diversidade intrínseca de seus pontos de vista, não se pode transformar na arrogância de pedir, simplesmente, à Lula o arquivamento terminante do processo.


D. Luiz pode chegar ao ''terrorismo'' da graça, mas não ao protesto radical onde sancionaria, pelo gesto impossível, o seu último suspiro. Perderá os sentidos e será realimentado, para voltar ao jejum. Gandhi que começou as ações afirmativas liberou a Índia não pelo jogo das greves de fome até certo ponto. Não deixou dúvidas, de saída, sobre a realidade, a cada passo, no confronto com o poder imperial britânico. Entregou a vida, de fato, sem retorno, no estrito jogo da fé no homem e seu sacrifício, de vez. Sem reanimação.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 05/10/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 05/10/2005