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Nosso sucesso, nossa solidão externa

 

Todo o prurido, aqui, nestes dias, com o deslanche das reformas, só contrasta com os elogios lá fora, que Lula vai colher na Europa. Apenas começa o desfrute, por um Governo consciente, da nova força desta imagem, e de como pode fazê-la pesar, no que seja a nossa originalidade como possível alternativa ao neoliberalismo exausto. Avoluma-se a ânsia de classificar a novidade.


Até de um "new PT", epíteto que lhe reserva o dr. Anthony Giddens, mentor do trabalhismo inglês, machucado pelos hematomas do pós-Iraque de Blair. O presidente não estará só, mas dentro de um quadro de outros governos e estadistas, a partir da régua da velha "terceira via", em Londres, a definir notas de apreço ou pitos de caminho.


Nada mais claro, no contraste com o velho labor, que, hoje, o progresso de Lula, que não precisa mais dos cabedais da utopia para dizer a que veio. Ou melhor, assegurar o mais difícil para as esperanças ingênuas, que é traçar um caminho de vigências sociais, sem perder-se no tatibitate radical. E não se trata de reavaliar os prazos das hipotecas do que prometeu. Mas de dar os olhos de ver, a quem sabe o que é a lógica de estabilidade, para se permitir o avanço das mudanças.


Lula não conseguiu apenas responder ao sonho implacável da banca externa, no capital que remunera e na liquidez que exige. Também já descartou todo o populismo, mesmo à custa do atraso aparente dos programas sociais, mostrando que o saciar a fome do Brasil indigente é também pô-lo de imediato, na obrigação cívica de educar as famílias despossuídas; força-as ao tratamento da saúde, e começar o mutirão para a infra-estrutura urbana, ou o programa de habitação como garantirá o Ministério das Cidades.


As notas boas lá fora vão hoje, também, a este esforço da mobilização continuada, que não parou com a festa da vitória eleitoral. As reformas vieram no tempo certo, em que se muda ou se perde o jogo, e os adversários que começam a granjear são os que escalam a divisão de campos, do pró e contra o abalo do rançoso statu quo brasileiro.


Credencia o caminho certo, a grita das corporações brasileiras, do Judiciário a todo o funcionalismo público, de renda garantida, por fora das oscilações do mercado. Formam no pólo oposto desses 30 milhões do fundo do poço, que não sabem como alimentar-se, no dia seguinte.


A diferença começa a desenhar-se, lá fora, num governo, que não ficou só no dever de casa da reestabilização, mas que tem que dar contas de uma agenda da impaciência nacional. Claro os trunfos aí estão, na redução dos privilégios da previdência, como no avanço da fiscalidade permitindo, inclusive, recuperar este quase 1/4 do PNB, brasileiro que escapa às cobranças, e morre na cumplicidade objetiva entre quem não declara e quem não cobra o devido ao Estado.


Este começo de Brasil diferente vê-se, por paradoxo, melhor lá fora na nova atenção que vem recebendo o Governo, no que faça para além da mera sobrevivência econômico-financeira. Mas esta esperança inesperada nos isola, ao mesmo tempo, dos desequilíbrios, agravados pela crise argentina.


Afirmamo-nos dentro dos pactos externos e deparamos a inviabilidade objetiva de qualquer frente periférica, retomando os velhos refrãos de uma aliança afro-asiática. Hoje a doutrina Bush deixa muito claro o quanto à África entra na fila conformada dos beneficiários, de mesadas históricas e curativos financeiros.


Trata-se de uma dependência já quase em reflexo condicionado, calando qualquer liame ainda, no velho cenário das Nações Unidas. O presidente Taylor, no caos da Libéria, sai ou fica, agora, não porque assim pense Koffi Anan, ou qualquer colegiado em Nova Iorque, mas em função do recado estrito e do rebenque em mão do ocupante do Salão Oval.


Na América Latina o avanço da Alca já engoliu o México e o Chile e, praticamente, transforma numa contagem regressiva o assentimento brasileiro, perdido qualquer capital de barganha no Mercosul, tendo-se em vista a convalescença sine die da Argentina.


De toda forma ganhamos em Washington a chance surpreendente de transferir para debate prévio na Organização Mundial do Comércio algumas disputas críticas do impasse. Lula, fiador de Chávez, deslindará barganha equívoca, para transformar-se em antagonista americano ou emprestar outro formato a uma liderança sul-americana. Mas esta, talvez, deverá passar por entrelaçamentos bilaterais, no ganhar cacife para o enfrentamento da Alca, se Bush vencer o próximo pleito eleitoral.


De toda a forma a nova envergadura brasileira permitirá as duas grandes reuniões previstas para 2004, em Brasília, no convite à Bush e à União Européia, para exporem-se à perspectiva que o sucesso dos próximos meses do governo dará ao país-continente, no esboço de outro destino que o das periferias, das abominações e epitáfios cínicos. O mais importante é que, ao veicular agora a proposta destes encontros, Lula tenha o ímpeto adquirido de um claro deslanche de seu governo, e da realidade aquém e além da Taprobana.


Um governo que pague 17,5% de prêmio ao capital estrangeiro é também o que ganha o direito de rever o abuso das privatizações, e seus empréstimos no BNDES, no que valha a regra dos contratos, também para a velha impunidade do devedor lá fora. Nossa nova estatura aí está, e Lula o sabe.


Nem vai mais trocá-la pelo prato de lentilhas de um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ou seja, da pretensão clássica e mofada do Brasil desenganadamente periférico, no quadro das Nações Unidas de antes do torpedo da Guerra do Iraque, e do país ainda desmunido do 27 de outubro, e da vitória-plebiscito do PT.


 


Jornal do Commercio (RJ) 11/7/2003