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Nossa inocência afro-latina

 

Falta-nos uma política caribenha a nos livrar do preconceito de uma fraqueza congênita desta região insular, esfarinhada, para muitos, entre diversas culturas. Não vencemos ainda uma interdição original em nos movermos na área pelo impasse de Cuba e uma contra-resposta de Miami, suas minorias ativíssimas e essa "Havana no exílio" já a começar a influir nas eleições da Flórida. E como abordaremos o repto haitiano, hoje primeira mira do Governo neste quadrante político? Qual o trunfo a extrair, desta específica e primeira identidade afro-latina, em que nos distinguimos da América espanhola?


Estamos diante de um tecido social especialíssimo, que não responde às relações convencionais entre sociedade e Estado. Port au Prince é, mais que cenário de uma mobilidade social indutora da institucionalização, o palco absorvente e excessivo em que o gesto ou a festa, a figuração, suprem o avanço do quadro esperado da racionalização e controle dos serviços públicos. Embotam-se, ou mesmo desaparecem, tanto entra a cidade no devoramento das megaescalas demográficas, saltadas da primeira amarração urbana, de antes do último meio século. As trocas vão ao descampado das ruas. Deparamos uma população de acampamento perene para a camelotagem, a disputa braço a braço do consumidor, de par com um conformismo final, acomodados os vendedores, no entressono da sesta e na comida saída das marmitas perpétuas, esvaziadas entre os dejetos do dia anterior.


A via pública sempre ocupada vai também explodir na sua própria coloquialidade. É traço único haitiano a troca dos clássicos grafites emblemáticos de uma escritura da marginalidade nas nossas grandes cidades, pelo dístico nas esquinas, todos eles contendo frases da absoluta espontaneidade popular. E vinculadas aos motes e palavras de ordem onde se reconhece o alerta orgulhoso deste dizer do bairro ou da quadra, que se quer como o protagonista final e exclusivo do que está à sua volta. São slogans sempre presentes no enorme caravançará, da conversa, em que cresce a família puxada ao retrato de um povo que não precisa de palcos, mas faz, da sua visibilidade procurada e ostensiva, o seu modo cívico definitivo. Ou melhor, transfere-se a celebração medular, nem descarga, nem cansaço desse estar junto, sem remédio e só prática do labirinto urbano, nem mistério, nem itinerância, que sabe dos seus limites, e os manifesta, intransitivamente. Discutem alguns desta especialíssima coletividade, que não se integram nos caminhos tradicionais da nação. Mal começamos, por isso mesmo, a trabalhar com a declinação dessa identidade, a partir de uma cultura como a da capital haitiana essencialmente retórica, e ciosa dos particularismos de sua impostação, quando se reflete na visão estrangeira. E tal começa, exatamente, pelos alçapões em que caímos no rotular uma cultura de ingênua, ou ver, com os olhos de sempre, o que seja o recado especialíssimo que se esconde sobre o decantado primitivismo da sua pintura.


Fazendo praça no seu inconsciente esta subjetividade não se confronta nem se resigna. Ganhou um sentimento imemorial da imobilidade; que povoou e guarneceu. Exprimiu-a de imediato em toda a inocência do paraíso, que não se condena ao exílio subseqüente, nem se pode ver na nudez em que se reconheceria uma arte ingênua ou naïve, que normalmente é um caminho acomodado da alma, muito mais do que uma irradiação, quase que genesíaca, do seu "ver o mundo", como no Haiti.


Não é outra a majestade de uma fatura popular, quase bizantina na sua opulência, em que o artista presume inconscientemente um espetáculo, e não a fusão na natureza das ditas pinturas primitivas. Atinge-nos este perpassar dos quadros, de um mundo que encontra o surreal extraído do cenário bíblico, de precisas temáticas da Torre de Babel, de Jonas, e da vomitação dos profetas, ou da danação de Satã, neste impacto agregado, que registram os visitantes do singelíssimo Museu de Arte do Haiti, atentando à nominata triunfal de seus autores. É como se, em toda a representação desta cultura, se quisesse a solenidade do suntuário já da opulência da feira perene.


O páramo mais rigoroso é o corolário deste luxo inominado do corpo e da faina, que delas não se despega no quotidiano. Vão aos nomes bíblicos, como aos dos templos do humanismo clássico, que permitiu às elites do país o contato com os filósofos gregos, os magistrados romanos, mais até que com os nomes da patrística. Abundam os Sênecas, os Hectors, os Sófocles, os Alexandres, os Aquiles e ainda os Anselmos. Isto para, na última nomenclatura, atingirmos ao zimbório para valer, com os Toussaints, os Dieudonnés, chegando, na majestade definitiva e intransitiva, aos Dieuseuls.


Valorizar esta especificíssima cultura caribenha, remetendo-a ao genérico da "civilização da festa", pode ser para nós, que comungamos da mesma parceria identitária, um desperdício do capital de fundo. Ou dos verdadeiros trunfos em que ainda dorme o encontro entre a afro-latinidade haitiana e brasileira, afundado na sua primeira inocência.


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 25/02/2005

Jornal do Commercio (Rio de Janeiro), 25/02/2005