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Não higienizemos o futuro

 

A Conferência de Alexandria ora em seu remate está gritando a fome de esclarecimento e de reciprocidade de perspectivas, a vencer a civilização do medo, e a depender do trabalho do intelectual à frente do seu tempo. Foram convidadas pela Academia da Latinidade personalidades ligadas ao nervo do pensamento contemporâneo, marcado pela reflexão do pós-moderno; pelo debate, no seio mesmo da hermenêutica islâmica, do que seja o seu horizonte de diálogo; pela paralisia do próprio centro do mundo ocidental, preso à ambigüidade, entre a arrogância e o receio, decorrente da vulneração, pela primeira vez, do próprio “santo dos santos” do território americano, pela catástrofe das torres gêmeas.


A biblioteca mitológica, refeita na baía de Alexandria e a se reclamar em futuro próximo do depósito inumerável dos textos virtuais, é o cenário que abre para o intercâmbio de um pensamento exemplarmente latino como o de Jean Baudrillard, Edgar Morin, Gianni Vattimo ou Alain Touraine; permite aos ocidentais ouvir especialistas islâmicos, Ali Harb, Gaber Asfur ou Hassan Hanafy; atenta às novas postulações de Federico Mayor, ex-diretor-geral da Unesco e responsável pela Fundação Cultura de Paz, propondo o que seja uma volta sem retórica ao diálogo mundial, por sobre a “zona de ninguém” criada pela síndrome do terrorismo e antiterrorismo.


Naturalmente o tema do medo regeu a discussão e o esforço de superá-lo por outros caminhos que os definidos pelos sombrios prognósticos da “guerra eterna”, assumida pelo Salão Oval após o 11 de setembro. O mundo islâmico não entrou no Jihad, e são claramente nodulares os focos em que se pode reconhecer a investida do Al-Qaeda. O perigo do confronto letal só se adensa enquanto se passa ao terrorismo individual, ao horror das meninas-bomba, indetectáveis no lance secreto do seu martírio. O que se teme aí é a passagem do confronto a um novo inconsciente coletivo sublevado e numa cultura que só agora, inclusive, estaria reproduzindo o padrão histórico dos martírios, muito mais próximos, justamente das confissões de fé ocidentais, quando confrontados à hegemonia imperial e, aí, a intolerabilidade com a insubordinação religiosa.


Ao mesmo tempo, a perspectiva americana interna colhe, hoje, em várias dimensões o endurecimento externo de resposta ao terrorismo. Evidenciou o desamparo e a perplexidade dos afro-islâmicos que tinham adotado o credo muçulmano, para marcar a diferença a sua identidade no seio da nação imensa.


Manifesta-se ao mesmo tempo, como salientou Craig Calhoun, o quanto o horror do Al-Qaeda só faz abrir uma reflexão ainda muito mais profunda sobre o conceito da risk society do atual fastígio dos Estados Unidos quando se põem a perigo os seus valores fundamentais, da melhor tradição dos pilgrims e quakers, ameaçados pelo cinismo operacional dos superpoderes – político ou econômico. É o que se dá com os escândalos começados pela Enron na fraude de suas auditorias, pondo em causa a fidelidade à palavra e, portanto, aos documentos contábeis e à básica confiança comunitária em que se edificou a enorme nação.


De outra parte, os supercontroles nascidos da integração financeira podem associar a pregação fundamentalista do governo americano a uma nova modelização universal, onde os vazios resultantes das Star Wars forçam a reconstrução, à imagem do paraíso americano, de instituições de outros padrões culturais, e outras visões de mundo.


O risco, mais do que o da nova penetração do Al-Qaeda no espaço aéreo dos Estados Unidos, ou das hecatombes que repitam o massacre de Atocha na Espanha, estaria na violência instantânea desta terraplanagem que remove a identidade destes povos, num verdadeiro confisco da alma. O que os debates de Alexandria avançaram foi este binômio de força e fragilidade, em que a confrontação mundial foi às cruzadas, e à desconfiança radical com o Ocidente, assimilado ao eixo Bush-Blair.


A latinidade se esgueirou diante destes cenários drásticos tirando todo o partido da convergência mediterrânea para afirmar-se a “Velha Europa”, agora reforçada pela guinada espanhola, a isolar cada vez mais o Continente do belicismo da Casa Branca. Mais ainda, este Ocidente pluralista ganha o Atlântico, por um denominador identitário, que não pode confinar o Brasil ao redil do “Cono Sur”, nem descurar de como começa a surgir uma África latina, depois de vencido o momento pós-colonial. E, sobretudo, aí estão os chicanos nos Estados Unidos que, pela própria força do crescimento demográfico começa, contrariamente à tradição de sumir no magma imenso, a buscar o seu poder de voto e reivindicação da diferença.


Salientou-se que é esta dominante Atlântica que assume, cada vez mais, frente à matriz européia, o córtex do futuro, enquanto nos próximos dez anos já contarão para mais de meio bilhão, frente às populações paralisadas ou estagnadas, do universo mediterrâneo. A latinidade ainda, e por outro lado, encontra o horizonte transnacional de nossos países, a terem vez como periferias ativas, no protagonismo externo ora adiantado pelo Governo Lula, e a que se soma o de Kirchner. Trata-se de acautelar, lá fora, a projeção de uma identidade coletiva que, por sua vez, internamente só se consolidará, de vez, pelo imperativo de transformação social, frente ao abocanhamento final pela marginalização dos excluídos de todo gênero.


O que depararíamos agora é a volta à helenística teimosa, segredo da latinidade a garantir a persistência da diferença sobre os impérios, que garantiu a sobrevivência do mundo clássico depois da queda de Roma como, após, a hegemonia árabe entregou a antiguidade ao Renascimento, e assistiu ao invento do Estado-nação. Dele surgiu a força dos povos por sobre a dos príncipes, na fermentação da democracia contemporânea.


O presente encontro em área simbólica significativa da vida do espírito quer assegurar a transleitura, que permite verdadeiramente ao diálogo uma visão não ideológica ou instrumental desta mesma democracia; a prioridade dos Direitos Humanos diante de qualquer fundamentalismo cultural; a pergunta da razão, diante da fatalidade do dogma, papel ainda da intelligentsia no mundo das cruzadas e da eternização de uma síndrome terrorista. O inventário de questões de Alexandria, na multiplicidade efetiva de vozes que ganhou, busca, sobretudo, o papel subversivo da consciência crítica, num mundo que apura cada vez mais a destruição limpa, e a higienização do futuro.


 


Jornal do Commercio (RJ) 16/4/2004