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Nações Unidas e democracia

 

A Organização das Nações Unidas (ONU), que reúne 192 países, instituiu o 15 de setembro como Dia Internacional da Democracia. Trata-se de atitude coerente com as origens da instituição e, por isso, o atual secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pode dizer que "sistemas democráticos são essenciais para se alcançarem os objetivos de paz, direitos humanos e desenvolvimento no mundo".


No Ocidente, todos esses conceitos tiveram início com o célebre discurso de Péricles, em Atenas, três séculos antes de Cristo. Nele o orador apresentava os elementos fundamentais da democracia: governo "não de poucos, mas da maioria". E explicava o seu sentido ético: "Não é o fato de pertencer a uma classe, mas o mérito, que dá acesso aos postos mais honrosos; inversamente, a pobreza não é razão para que alguém, sendo capaz de prestar serviços à cidade, seja impedido de fazê-lo pela obscuridade de sua condição."


Num de seus livros, afirma Roberto Dahl: "A democracia não é uma fórmula particular de sociedade ou uma concreta forma de vida, mas sim um tipo específico de procedimento ou de técnica, em que a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos a essa mesma ordem, para assegurar a liberdade política, entendida como autodeterminação."


Daí podemos concluir que a democracia, como puro procedimento, carece de um conteúdo substancial: não garante que as normas de ordem social tenham de ser justas ou equitativas, que expressem o interesse comum; assegura, tão somente, que todos quantos vivem sob sua sujeição tenham participado de sua criação.


Ademais, os conceitos elaborados pelo jurista Hans Kelsen nos levam, necessariamente, à distinção entre democracia representativa e democracia participativa. A "Teoria da Representação" é calcada na premissa de que os que tomam as decisões na democracia representativa são os representantes livremente escolhidos pelos eleitores. A eles cabe aprovar as leis que organizam a sociedade e o poder. Por seu turno, a democracia participativa significa um passo adiante: os representantes não apenas aprovam as leis; devem votá-las, desde que atendam aos requisitos de justiça e equidade e exprimam o interesse comum.


Considerado sob esse aspecto, o fundamento ético de representação política e seu papel insubstituível consiste na necessidade de enfrentar e superar as novas demandas sociais. Quando isso não ocorre, o resultado é o surgimento de crises que se sucedem sem que, muitas vezes, saibamos qual a sua causa.


Mas, para acentuar o pressuposto de que sem moralidade não se pode fazer democracia, voltemos a Péricles. Explicava o estratego e político grego: "No tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas. (...) Ao mesmo tempo que evitamos ofender os outros em nosso convívio privado, em nossa vida pública nos afastamos da ilegalidade principalmente por causa de um temor reverente, pois somos submissos às autoridades e às leis, especialmente àquelas promulgadas para socorrer os oprimidos e às que, embora não escritas, trazem aos transgressores uma desonra visível a todos."


Do tempo de Péricles aos atuais, houve novas e naturais conquistas democráticas se acrescentando na teoria e na prática. A preparação da Revolução Inglesa gerou a racionalização política de Locke; a da Revolução Americana produziu Jefferson e Madison, importantes constitucionalistas, e não só grandes líderes; a Revolução Francesa criou a doutrina da completa soberania do povo em Rousseau e a divisão dos Poderes segundo Montesquieu.


Abraham Lincoln e Woodrow Wilson completaram essas definições: Lincoln ao dizer que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo; Wilson acrescentando que nela as instituições são mais fortes que os homens. Isaiah Berlin, por sua vez, sintetizou essas liberdades em dois conjuntos complementares: liberdade da opressão econômica, religiosa, política e social; e liberdade para o sufrágio universal, educação pública e gratuita, e confraternização de classes, gêneros, culturas e civilizações pelo pluralismo.


Todos esses conceitos, oriundos das experiências históricas dos povos, referem-se ao conteúdo da democracia. Quanto à sua forma, também fundamental é a contribuição de Hans Kelsen. Foi ele que demonstrou a necessidade dos direitos das minorias e de um Parlamento com partidos políticos representativos e responsáveis, definindo a democracia necessariamente como democracia de partidos.


Também no Brasil temos os grandes teóricos e práticos da democracia. Joaquim Nabuco é nosso maior defensor dos direitos sociais, contra todas as formas de escravidão; Rui Barbosa, outro tanto dos direitos individuais e das liberdades públicas; Anísio Teixeira, os da educação para todos; Sobral Pinto, os direitos humanos. Aliás, em Pernambuco, Gilberto Freyre defendia a ecologia desde a primeira edição de Nordeste, em 1937, e, já na década de 1960, Vasconcelos Sobrinho estava entre os precursores dos movimentos ambientalistas no Brasil.


A Constituição é a suprema formalização da democracia, que, nos novos tempos, incorpora uma espessa declaração de direitos sociais e econômicos. As modernas Cartas Magnas, como a brasileira de 1988, acrescentam o reconhecimento de outras conquistas de direitos e deveres, inclusive no campo dos direitos humanos e da preservação do meio ambiente. Mais do que nunca, o mundo necessita expandir, por toda parte, os valores da democracia verdadeira, autêntica. Democracia social, com ética, participação e igualmente atenta ao território da cultura, pois neles estão alojados os valores que definem a identidade dos diferentes povos e nações.


Correio Braziliense, 9/10/2009