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Moralismo e estado de direito

 

A decisão do Supremo na Ação Penal 470, vista como a mais importante da sua história, mostra, de logo, o seu impacto sobre a sociedade civil, para além mesmo dos abalos no nosso estado de direito. Aí está a explosão nas redes sociais, a indicar um racha único de classes. É a rejeição maciça da absolvição do crime de quadrilha, que traduz o clássico moralismo das nossas classes médias, levado à sua exasperação. Vem de par com a condenação do governo Dilma e com a suspeita de indicações facciosas dos novos ministros do Supremo, que permitiram a alteração do quorum do julgamento anterior. É como se o presente status quo finalmente trouxesse à tona a correção de rumos das condenações pelas vozes dos novos ministros, adrede trazidos à Corte.

Mas, desses jogos das suposições, passamos às certezas dos riscos ao nosso estado de direito, vindas do ministro Joaquim Barbosa. Declara ter sido uma tarde triste para a Corte, a da alteração das sentenças por uma “maioria de circunstância”, nos votos do pleno da Casa. Defende uma invariabilidade dessas decisões consoante às maiorias anteriores, ou seja, de solidez prévia, frente a toda nova e emergente convicção dos ministros. Não contém, inclusive, a sua indignação, na sua diatribe contra os magistrados “perturbadores” no entendimento da aplicação da lei pelo mais alto Judiciário do País.

Os ministros Rosa Weber e Teori Zavascki evitaram o debate, a ecoar solitário, diante da consciência do país. Nessa sequência, só avança o clima mais amplo de um possível revisionismo das primeiras condenações, marcadas pela indiscutível exorbitância das penas. Avança aí um sentimento maior e nacional contra o excesso inicial dessa dita dosimetria, no extremo dos quarenta anos impostos a Marcos Valério. Não se discute a existência de crimes de corrupção ativa ou passiva. E deparamos o acordar da nação, saída do regime das clientelas para a possível criminalidade de suas elites. As Cortes se anteciparam à maturação de um consenso quanto a essa gravidade e quanto à distância entre o escarmento e a justiça. O que também se registra é a sensibilidade nacional pela autonomia dos poderes, com o ganho irreversível para a democracia. O Judiciário se antecipa ainda a esse avanço, no resultado final da Ação Penal 470, estabelecendo a distinção, de vez, entre o escarmento e a justiça.

Jornal do Commercio (RJ), 14/3/2014