Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > 'Migração boa' e o ocidente depurado

'Migração boa' e o ocidente depurado

 

O primeiro-ministro Cameron, da Inglaterra, frente a larga reticência do Parlamento, acaba de defender a política da "migração boa" para o futuro do Reino Unido. Dos seus 62 milhões de habitantes, quase 5% vêm de estrangeiros para se radicar nas ilhas britânicas.
 
O que está em causa, pela primeira vez nesta virada do século, é a restrição ao fluxo internacional que choca, de imediato, com as garantias dos direitos humanos de nossos dias. Não estamos ainda diante das proibições de etnias, nem do horror da retomada do que foram, no nazismo, as políticas frontais de exclusão coletiva do seio da modernidade. Mas à proposta de Cameron - para nossa inquietude - ecoa " também a de Angela Merkel entre migrações bem-vindas, ou mal-vindas, a colocar nestas, e de logo, a de árabes na Alemanha.

Estas medidas têm como pano de fundo o sustento da hegemonia, assentando-se sobre largas fraturas culturais, e a caminho do que os fundamentalistas de agora vêem como a defesa de um Ocidente eugênico, ou depurado. Não há que repetir o quanto o direito a migrar está coberto pela Declaração das Nações Unidas, e se articula como uma expectativa que é não de nações, mas da humanidade à busca de níveis melhores de vida e fruição social. O pleito se enquadra como uma exigência intrínseca da cidadania por sobre fronteiras políticas ou arames farpados territoriais. 

A iniciativa de Cameron parece ecoar o movimento dos Estados Unidos dos últimos meses, em toda radicalidade da direita do Partido Republicano, expressa pelo Tea Party.O senador de Rhode Island, Peter King, vem de declarar que o Ocidente cristão deve associar a defesa dos valores da família à redução das garantias sindicais e, sobretudo, à erradicação dos árabes no país. Claro, aí está o repúdio nítido pelo grosso da opinião pública dos Estados Unidos ao extremismo republicano e a reforçar, neste momento, ainda a indecisa e futura maioria de Obama.  

A crise do Oriente Médio embaralha ainda mais uma tomada de consciência deste neo-fundamentalismo ocidental. Somam-se, com o legítimo clamor pela democracia, os problemas de defesa da identidade cultural ou da predominância, ainda, de monarquias impostas contra as maiorias religiosas desses Estados, como resquício do velho imperialismo ocidental abatido no segundo após-guerra. Muito mais do que defesa das práticas eleitorais, a rebeldia no Qatar liga-se à domi-nância de uma dinastia sunita num país maciçamente xiita desde as suas origens. Da mesma forma, o repúdio à violência de Khadafi põe em causa também o perigo, com a sua remoção, da torna da Líbia à confusão de tribos clânicas, vencida pelo primeiro sentimento nacional do país, assegurado pelo coronel, que persiste emTrípoli e se reforça hoje pelo apoio da União Africana.
 

Agrava-se o perigo de que o Ocidente anti-árabe possa apelar para o implante de uma globalização nascida de denominadores sociais predeterminados. Logramos até hoje, com todas as pressões do 11 de setembro, dissociar, de qualquer etnia, o perfil geral do terrorismo. Mas esta passagem do conservadorismo europeu à seleção migratória abre a interrogação, sem resposta. A segregação pretendida é um eco, oriundo do traumatismo decorrente da queda das torres, ou um novo malthusianismo econômico, no mercado da prosperidade concentrada do Velho Mundo?
 

Jornal do Commercio (RJ), 21/4/2011