Nos últimos 20 anos no país, a taxa de violência aumentou de 77%, atingindo hoje a média de 50 mil pessoas por ano. O incremento é dos mais perturbadores e se choca com os demais índices que hoje situam o Brasil em ganho crescente de prosperidade e bem-estar social. Banaliza-se o crime, mas amadurece a mídia em noticiá-lo. Perde o caráter de sensacionalismo e começamos a agendar um alerta, e uma política pública nesta área crítica da mudança. Ao mesmo tempo, a repetição do evento vem anestesiando a sua repercussão e leva a uma retórica do conformismo na civilização de massa dos nossos dias. É o que induz à pergunta, qual é o nível de tolerância com a desordem, e qual é a temperatura mediática, afinal, para enquadrá-lo nas manchetes, reduzi-la a um estereótipo e, para muitos, como acidentes do progresso, e não afronta continuada à nossa humana condição? De toda forma, no mundo mediático a violência já perde toda a condição de impacto direto sobre a opinião pública, tendo-se em vista o seu potencial mercadológico ainda de sensação, ou o migrar para outro registro de interesse coletivo.
A imprensa deu-se conta, por si mesma, do teratológico das fotografias cruentas e não se trata mais de pedir aos repórteres que só voltem à redação "trazendo o boneco", ou o melhor flash do cadáver ou da mutilação da vítima. E também dentro dessa nova modernidade nacional, aí estão as pesquisas mostrando que os anunciantes, hoje, fixam-se mais nas páginas de economia, ou já agora de ciência, que na dieta repetida da violência cotidiana.
O Cesec, da Universidade Candido Mendes, está promovendo seminário em conjunto com outras entidades especializadas, a mostrar o quanto uma política de informação conduz as próprias pautas de uma emergente conduta de segurança coletiva. É o momento, também, de verificar-se o quanto, neste outro índice do próprio avanço da cultura brasileira, o jornalismo investigativo se transforma em acicate deste avanço da cidadania, deselitizando o crime, os privilégios do mandonismo e as cortinas de silêncio em torno da freqüentação dos donos de poder ao Código Penal.
O avanço mediático chega ao que Baudrillard chama a virtualização do evento, ou à informação do crime, tão só, como seu estereótipo. Vai, de par, à visão rígida do que seja a "favela", o "marginal" ou o "comando", ou a retaliação dos confrontos entre o dito banditismo e as "forças da ordem". Seguem o script sem volta de uma retórica da violência.
Neste cenário verificamos que a polícia fluminense é a mais violenta do país, e do mundo ocidental, pois que matou, em 2005, 1.098 pessoas em ação legítima, contra 300 em São Paulo, 370 em 2003, por todas as polícias dos Estados Unidos, 681 na África do Sul, 288 na Argentina, cinco mortos na Alemanha e um em Portugal. Muito dessa exasperação é atribuída à visão de "gangue" e antigangue, em que se vêem os protagonistas nessa cobertura mediática emprestada ao confronto, e ao gatilho de extermínio de corpo a corpo e sua cota devastadora de balas perdidas.
As reações surpreendentes do filme Tropa de elite mostram, por outro lado, o retrocesso à admissão difusa da tortura pela consciência cívica fluminense, mais que a brasileira. Insensivelmente, o confronto passou ao cenário da guerra e a todo seu imaginário sem volta, preso, de vez, aos seus estereótipos. É nele que, no script mediático, "bandido é bandido, polícia é polícia", e a gratificação faroeste ampliou a razzia entre os criminosos. Mas o capitão Nascimento está aí, também, para mostrar, contra a ditadura do script, como se pode passar, de vez, da moral da corporação para a da própria consciência.
Jornal do Brasil (RJ) 31/10/2007