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Merecer a renúncia do papa

 

A intensidade desses dias pós-renúncia do papa resulta do choque do gesto quase inédito de Bento 16, frente ao que o pontífice viu, de início, como a sua meticulosa desaparição na vida da igreja.

O que assistimos foi ao impacto dessa verdadeira dessacralização do eclesial no inconsciente coletivo. A lucidez do homem passa a prevalecer sobre todo o providencialismo fatalizador a comandar a ação do papa. E, de logo, no futuro imediato, há que se reconhecer a superação da alternativa sucessória entre conservadores e progressistas.

A tarefa da igreja à frente não é a das suas posições sobre o casamento gay, a eutanásia ou o intervencionismo na questão das células-tronco. Onde chegaríamos, por aí, ao que espera o povo de Deus da mensagem no seio do seu tempo a que nos conclamou o Vaticano 2º? Chegaríamos à enorme lição do Concílio, que os pontificados subsequentes não responderam.

E é exatamente nesse cinquentenário do Vaticano 2º que urge essa presença, no seio da contemporaneidade, e a sua interferência no sentido da história. Há que se atentar à absoluta minoria cristã, dentro do peso asiático da população do novo milênio.

Deparamos a maciça concentração católica no mundo ocidental, onde o credo perde as maiorias em muitos países europeus, a partir da Holanda, da Bélgica e da França, "filha mais velha" da igreja.

Não adianta, por outro lado, procurar a mazela imediata, justificativa do gesto do papa, vinculada à totalidade da reflexão existencial, sustentada por um surpreendente reconhecimento da própria incapacidade. Estamos diante de um evento saído de toda a lógica das sequências e chegando, por um salto, ao verdadeiro acontecer.

Avulta hoje o entendimento da laicidade como o efetivo "sinais dos tempos" no caminho da modernidade e após o endurecimento de Pio 9º e Pio 10. Verificamos o desponte das "guerras de religiões" como afirmação das culturas desse começo de século, após se superar o entendimento do Ocidente como a única civilização.

A urgência da tomada de posição não aceitará um segundo e cansativo papado de transição. Um novo contraponto entre imanência e transcendência nos caminhos da fé já foi assinalado, na interrogação desses dias, nas dificuldades de uma atitude fundadora, buscada, por exemplo, pela Teologia da Libertação, como autêntico profetismo da igreja.

E é nesse registro que o choque da renúncia, como assumida por Bento 16, instaura uma problemática prévia ao dilema gasto entre mudança e status quo.

Os reclames da igreja no nosso tempo exigem resposta às lições dramáticas do terrorismo, à coexistência das diferenças, à humildade da conversão e à afirmação não-retórica do comunitarismo. A renúncia serve para superar as rotinas da continuidade da igreja-instituição e implementar uma nova face, de igreja-serviço, próxima aos fiéis.

Folha de S. Paulo, 26/2/2013