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Memória e Democracia

 

Nesta quarta-feira de cinzas, devo terminar a arrumação das velhas cartas de família, tarefa que sempre adiei, para desviar o rosto de meus fantasmas. Decidi, no tempo que precede a Páscoa, mergulhar no rio de águas esferográficas, quase todas de azul claro, narradas num presente que me parece, hoje, ficcional: de vidas liquefeitas, encontros e súbitas despedidas. Uma pilha interminável de papéis amarelados, selos antigos, postais em preto e branco: sessenta anos de relação entre o Brasil e a Itália. Cartas úmidas, assim como os meus olhos, de História, que surge na selva de frases protocolares, antecipando violentas confissões e ódios represados, entre sonhos mínimos e afetos de natureza vária.

O rumor de fundo, o rumor da História se traduz via de regra em frases curtas, onde me deparo com a morte de Getúlio, Brasília e Juscelino, a ditadura militar, a morte de Tancredo e o impeachment de Collor.

As cartas se referem ao Golpe com prudência, evitando nomeá-lo. Menino ainda, nos anos setenta, eu colecionava figurinhas e charges políticas, do Pasquim, para os primos na Toscana. Ouvia também as rádios que transmitiam da China e da Rússia para o Brasil, abrindo ou fechando a programação com a Internacional, que era quando precisava abaixar prontamente o volume, nos tempos de Geisel. Lembro que escondi com cuidado a gramática de russo, que comprei no centro do Rio aos quinze anos.   Algo disso também revejo nas cartas.

Nasci poucos meses antes do Golpe e hoje procuro entender a mim mesmo e a história recente de meu país.  Preciso unir essas duas pontas para desenhar minha geografia. É tempo de dar fim às perguntas que permanecem dolorosamente abertas e que afligem e magoam as famílias que tiveram parentes torturados e desaparecidos.

Alguns setores têm se referido à ideia de revanche ou de vingança por parte das comissões da verdade. Sejamos claros: trata-se do direito essencial de enterrar, física ou moralmente, seus próprios mortos, como Antígona, e de terminar um processo de democratização que se adia infinitamente, como eu mesmo fiz com as minhas cartas pessoais.

Trata-se de uma afronta ao estado pleno de direito.  É preciso avançar com prudência e destemor, para que as comissões façam jus ao nome e se orgulhem de um trânsito final do processo republicano. Um encontro eticamente inspirado, dentro dessa arqueologia da dor, foi o encontro de Cid Benjamin com a viúva de Amílcar Lobo. A atitude de ambos representa uma conquista em que a verdade e a justiça não arrefecem, antes propiciam uma janela aberta para a reconciliação dos atores envolvidos e da sociedade.

Lendo essas cartas, me pergunto quando faremos uma reforma política autêntica, onde se eleve a qualidade do Legislativo, sem o protagonismo do Judiciário e o sequestro do Executivo com alianças inomináveis. Esta é a minha carta com as cinzas desta quarta-feira.

O Globo, 05/03/2014