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Meio-dia em Porto Alegre

 

É só vermos os jornais europeus, e a força da primeira página dos cotidianos franceses, para nos darmos conta do impacto que a reunião de Porto Alegre ora ganhou, muito para além das escaramuças do anti-Davos inicial, no ano passado. É quase como se invertessem as posições. A capital gaúcha parece dar o tom da temática de um primeiro encontro sobre o "que fazer" mundial, espicaçado pelo 11 de setembro, e pelos riscos que uma "civilização do medo" antepõe ao clássico confronto Norte-Sul e à oratória exangue dos ricos e pobres. Ou do palavreado fóssil com que os senhores do mundo debruçam-se sobre as ditas periferias, quando, hoje, uma subversão cultural nasce dos ossos da miséria e da exclusão sem volta.

Os cenários se transportam. E é, sobretudo, como multibusca às saídas do neoliberalismo que vai à rinha a capital rio-grandense.


Porto Alegre se transforma no campo de provas deste teste para a reafirmação, por exemplo, do socialismo, ou da social democracia, postos hoje à prova nas nações-chave da Europa pela dureza ortodoxa da América de Bush, e do mais triunfante dos conservadorismos do último meio século. Entra em dúvidas o sucesso de Lionel Jospin na frança, para as eleições do ano vindouro, tal como o avanço do governador da Baviera, ala extrema do conservadorismo democrata-cristão, põe a perigo a sobrevivência do governo Schroeder, em Berlim. E a Itália de Berlusconi, tal como a Espanha de Aznar e, agora, a derrota dos socialistas de Guterres, em Portugal, forçam o urgentíssimo empenho de uma esquerda no Continente, frente aos mecanismos hegemônicos da globalização acelerada. O sucesso de Washington, das guerras praticamente zero-baixa contra o terrorismo, tornam prioritária a resistência da velha matriz ocidental européia a esse espírito de cruzada e de missionarismo cultural e político, que agora desbordam as meras conformações envolventes do mercado e suas lógicas de concentração e desnível econômico.


Confrontação


Acorre à capital gaúcha o melhor desse socialismo, inclusive com a presença do secretário geral do partido em França, Xavier de Hollande, e a inédita reunião das Ongs, que já saíram da confrontação heróico-folclórica com a tragédia da morte do primeiro contestatário, Carlo Juliane, em Gênova, e juntam os melhores remanescentes de Seattle por uma consciência universal da cidadania diante do efeito perverso que contamina a ação antiterrorista. Mary Robinson, a admirável secretária geral dos Direitos Humanos para as Nações Unidas, se inquieta pela demolição, a título de segurança, dessas garantias elementares de que a própria nação americana se fez pioneira desde a sua Carta bicentenária, garantindo o habeas corpus; a presunção da inocência de indiciados e o direito ao contraditório nos julgamentos. Porto Alegre tem como pano de fundo as celas-castigo em Guantanamo e a classificação, pelos Estados Unidos, dos talibãs, como "combatentes ilegais", desprovidos das garantias da Convenção de Genebra sobre os prisioneiros de guerra.


Este laço contagiante das Ongs vai se engrossar das minorias islâmicas americanas, ainda trânsidas do novo choque discriminatório que as ameaça, de confusão com o Al-Qaeda, não obstante as suas explícitas condenações do terror do 11 de setembro. Será inevitável no encontro gaúcho essa toma palavra, também, do vasto grupo afro, da melhor estirpe de um Luther King, que adotaram o Corão como sua prática religiosa e cidadã, como forma de lutar pela diferença, no magma social da nação de todos os pluralismos.


Exorcismo


O corpo moribundo da Argentina, na fronteira, serve de melhor exorcismo ao que representa a catástrofe neoliberal em nossas periferias. O que é modernização, acolhida por todos, e inclusive pelo mundo islâmico? O que é a expropriação da alma que pode vir no bojo da globalização, se não se extrai o veneno dessa passagem, do sistema econômico ao cultural?


Já estamos a anos luz da contestação do ano passado, das marradas de José Bové contra os balcões do Mc Donald's, em luta contra a homogeneização dietária, símbolo desta perda de todo o artesanal, da defesa do paladar e da pequena agricultura, e bastião também da diferença que, ruída em qualquer dos seus elos, não tem mais como evitar as terraplanagens do mundo só. O professor Boaventura, por certo, já se antecipou na pregação de tantos, quanto à busca dessa alternativa que junta o Ocidente europeu ao nosso Pindorama, na crítica a este Corão do Ocidente, em que se transforma a crença de Washington, passada a organismos internacionais, num verdadeiro credo, hoje, do fundamentalismo da nossa prosperidade. E é rica a meditação brasileira, que vai aos palanques e à mídia nesta ano crítico, reptando a inércia social democrata, em que quase roçamos a catástrofe portenha.


Sem o luxo de uma depuração teórica final, o outro caminho aí está - numa verdadeira prévia dos programas eleitorais - na garantia da reserva de controle do Estado na economia; na revisão do "leva-tudo" das privatizações; na crítica aprofundada das políticas de auxílio internacional, que já entraram em mea culpa, no ter-se feito da Argentina uma "nação-pária", para mostrar o custo da desobediência dos currency boards; no que seja uma política social, ligada à macro-urbanização e aos verdadeiros insumos da mudança, e não à condolência in extremis, da cesta básica. É desnecessário mostrar-se o quadro de desestabilização agravado nesses últimos meses, neste resto da América do Sul que confronta o Brasil, como mostra o racha simétrico do pró ou contra Chavez, na Venezuela, em que, há um ano, o Presidente detinha 90% do apoio popular.


Porto Alegre ganha essa força histórica onde a social democracia, ou o socialismo jospiniano, se fertilizam do exemplo do PT, e permitem a este extraordinário empenho de Tasso Genro e seus companheiros, dar velocidade de escape ao mundo de Davos, seus senhores, e sua contrafação da verdadeira prosperidade. O meio dia ilumina a capital gaúcha, na pasagem do quadrante, do confronto à iniciativa. E pela primeira vez, e a partir da derrubada das torres de Nova York, liga-se, pelas periferias, o que na retórica dos centros se vê como uma "guerra de religiões", ou um terorismo sem fim. O Porto Alegre II já estará, por sua vez, a anos luz do Porto Alegre III, se a efetiva busca da alternativa fizer das próximas eleições, aqui e além Atlântico, mais que um voto, uma opção.




Jornal do Commercio em 01/02/2002

Jornal do Commercio em, 01/02/2002