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Maomé, a liberdade e a blasfêmia

 

De repente, e não mais que de repente - e da Dinamarca - sai-se para a mais inesperada das pioras no conflito Ocidente-Islão. Não bastasse a derrubada das Torres, a invasão do Iraque, chega agora o Hamas, por irrepreensível maioria democrática, ao comando da Autoridade Palestina e à jura pela derrubada de Israel. Não mais que de repente, irrompe a dita blasfêmia contra o Profeta, após a nitidez com que Bush, no discurso sobre o Estado da União manteve os pressupostos da "civilização do medo", diante do ano novo prometido por Bin Laden. O saudita oferece, por uma vez, um Tratado de Tordesilhas à Casa Branca. Troca a saída da Cabul e do Iraque por uma tranqüilidade a perder de vista para um Ocidente reentrado nas suas fronteiras.


A primeira publicação de caricaturas de Maomé põe em causa, também, o imediatismo e rispidez com que os principais jornais europeus enfrentaram a violência da diatribe muçulmana, diante do escândalo da imagem, do fundador do Islã. Não se alegue seja retrato ou figura - por definição inexistente - do simulacro, absolutamente abstrato, puxado à galhofa pelo desenho dinamarquês. O novo é esta violência da contra-reação européia em bem da mantença dos direitos invioláveis à expressão de pensamento, chegado logo a extremo o conflito entre direitos individuais ou a liberdade de crítica, o respeito à religião. Razão, por inteiro, caberia ao Vaticano, como aos evangélicos americanos ao reconhecer sim o quanto o tratamento sarcástico do profeta violenta o respeito aos credos, na garantia fundamental das liberdades de nosso tempo.


O inédito e inquietante, entretanto, reside na contundência com que jornais como "Le Monde" ou El País", ou !liberation", ou "Die Welt", reproduziram as caricaturas enterradas no cotidiano de Copenhague e transpuseram o problema ao ethos de informar e criticar, a que se associa a democracia mediática. Antes de que, na enormidade do estampido e da comoção, os poderes públicos a partir do Salão Oval condenassem o dito ultraje dinamarquês, deu-se a irrupção de um verdadeiro inconsciente coletivo, do melhor da modernidade, no âmago de sua defesa européia. O apoio ao "Jullands Poster" cresceu e vingou, enraizado, idêntica ao da verberação do holocausto, ou da condenação à tortura pelas quais se define um patrimônio de conquistas da civilização, que luta pela sua preservação.


A gravidade única do incidente nasce da primeira defesa para valer, pós 11 de setembro, de uma premissa irredutível do universo democrático, frente a clamor idêntico, de respeito ao exercício da fé. Os diretores do jornal de Copenhague podem lamentar o agravo e suas conseqüências. Mas é inadmissível - como o referiu o governo dinamarquês - um pedido de desculpas à opinião pública internacional, ou ao mundo islâmico que se veja agredido.


Têm razão analistas dos direitos humanos de ver um começo de "toma de consciência" do abismo do conflito erguido pela queda das torres que pode levar a esta fissura interna, no eixo mesmo do Ocidente. O Salão Oval assume a tortura, tal como condena as caricaturas do profeta. Os centros mais avançados da opinião pública do Velho Mundo não param de denunciar Guantanamo ou Abu Ghraib, mas não vêem como cercear a liberdade de opinião e o seu risco, enquanto marco inarredável da sociedade democrática.


Só aumenta hoje a distância para se saber até onde repercutiria a queda das Torres e um sentimento, ou irracional de forra tardia que, de súbito, imantou uma "visão de mundo" e dá lugar, internacionalmente, ao desagravo da violência e sua seqüela de morticínios. Não há precedentes do preço histórico de uma caricatura. Nem do que, na retaliação, ainda, horrenda e prometida, acena oficialmente o governo do Irã, pondo a leilão e a concurso a provocação ao grotesco do Holocausto.


Os guerrilheiros que invadiram os escritórios da União Européia em Ramalah, incendiaram as embaixadas da Dinamarca em Beirute, Teerã ou Damasco, escolheram um novo inimigo, e querem ver as bombas de Bin Laden sobre o Castelo de Hamlet, ou o Passeio de La Reforma em Madri, ou em Versailles. Faltou a caricatura de Maomé protestando contra Abu Ghraib. Mas é a Europa do seu melhor jornalismo, e do mundo das luzes, que vai responder pelos agravos reais ao direito da crença. Democraticamente, num continente que aceitou o Tribunal Penal Internacional e a defesa dos direitos humanos no horizonte da "civilização do medo".


 


Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 10/2/2006