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Lula, nem pressa, nem carisma

 

Os primeiros seis meses de governo sedimentam a marca de 43% de satisfação plena da opinião pública, a que se somam mais 40% no considerar a performance, de razoável para boa. O país pró-Lula não sofre assim, no chão do bom senso popular, da zoeira da intelligentsia ou dos grupos radicais, inconformados com a demora do a que veio o PT, argüindo quer da consistência de uma ação de esquerda, quer do próprio compromisso com a transformação social. O inédito desses dias, em que pretende o partido cassar os seus radicais, tem um recado mais fundo: a legenda penetrou-se da realidade e só quer, a partir das tensões concretas, ponderar toda a contundência do que possa ser uma alternativa ao status quo , à mesmice de um regime apenas sobrevivente à asfixia internacional.


O enfrentamento de José Dirceu elimina os rescaldos das pseudopromessas, tal como os sucessos de Palocci e Meirelles garantem o ponto de partida para outro desfecho do que o neoliberal, buscando a pertinácia da saída à camisa-de-força do que está aí. Derrubou-se a agressão do capital especulativo, começada pela demolição da candidatura Lula e continuada na tentativa de quebra do ímpeto do governo. Baixou-se o risco Brasil, afinal, de 2.000 para 700, e a marca cambial já é uma da normalidade das nossas expectativas de transações externas, voltando ao começo de 2002. Mas, embalde, uma perspectiva de globalização onde, afinal, tudo é conjuntura, permitirá que o plantão do Tesouro e a dureza financeira baixem a guarda, de vez. Tínhamos um prazo para vencer a inércia geral do sistema, quando vale tanto a ação quanto a decisiva vontade da mudança, e esta se manifestou no começo dos projetos de reforma, da Previdência e fiscal, logrando o PT, na ocasião certa, as maiorias confortáveis para avançá-las no Congresso. Tirou partido o governo de que, num país subdesenvolvido, pode-se usar a prática da clientela a bem de outro Brasil. O sistema é frouxo o suficiente para que a troca de vantagens e benesses vá as reformas, desde que não se atinjam as vantagens dos legisladores no rateio do poder. O status quo empoleirado nos cargos públicos não tem por que bloquear a passagem do ímpeto social transformador. Não acossam a larguíssima maioria dos partidos aliados casos de doutrina, consciência ou ideologia. A grita fora das representações parlamentares, por uma vez, vai às mobilizações corporativas, justamente no alvo do abate da cumulação de benesses e vantagens do Ancien Régime que, de tão naturais, até podem ser defendidos com a melhor boa-fé e ira santa, de todo o próprio serviço público, frente à verdadeira mobilidade de um estado de classes sociais e de sua competição igualitária pela renda nacional. O realismo tão vituperado hoje pelas cassandras da pureza programática assentou a credibilidade do governo no quadro das obrigações com o capital estrangeiro. Não se atinge a regra do pacta sunt servanda , como pede a maturidade política do país, e o cacife da convivência internacional já colhido nesses seis meses. Ao contrário, se a cobra nas dívidas que ora se empilham no crédito tomado ao BNDES para a privatização da Eletropaulo.


No passo adiante contra a inércia, não há fórmulas para disciplinar a paciência com a fome ou o desemprego, quando o governo não quer dormir de touca tecnocrata. Pior que a carência é o desperdício, e este pela destinação errada do que se prioriza. Foi o que forçou o levantamento do cadastro gigantesco, por Graziano e Benedita. Aí está, agora, o Fome Zero como instrumento da cidadania, sabendo a quem dar e de quem cobra, forçando a alfabetização do beneficiado e sua família, obrigando-o à consulta a posto de saúde ou ao mutirão habitacional. Tal como a poupança alimentar não quis ser o curativo do instante, o de melhoria de emprego resistiu à vitrine oportunista, fora das condições reais de um empresariado a pagar ainda a conta da estabilização.


No sobe-e-desce das predições da realpolitik petista, o triunfo inédito é o do desempenho específico do presidente, à testa da confiança popular. A partir da romaria da posse, a festa cívica continuada expõe-se ao rigorismo das elites, condenando o “excesso” do discurso de Lula, a retumbância da fala, talvez, para alguns, a caminho dos carismas e da autoconfiança, em gerir o imaginário estuante que deu ao país. Neste protagonismo, já supera seu único competidor histórico, Juscelino Kubitschek. Mas é na figura do malazarte mineiro, de todas as presenças e entusiasmos, que se tem, no passado, o melhor antídoto aos perigos catastróficos de um Collor no Planalto.


O contágio de Lula é o da conversa; do corpo-a-corpo incessante; de um envolvimento popular, nascido da birosca, da calçada de fábrica, das caravanas, do infindável dos debates do PT. Desse à-vontade único em que pôde ainda, recentemente, no chão que é só seu, desarmar a CUT e responder no chão da réplica e tréplica de que nunca se dissociou o sindicalista de Santo André. A demasia vocabular em que as cassandras vêem o risco, no seu vezo elitista, avança pela ressonância imediata dos que têm sempre à sua volta, e nunca na distância.de um balcão peronista, ou da câmara álgida dos microfones de estúdio. Envolvente-envolvido, Lula torna-se sempre o presidente refém, no passo adiante que venha a dar. Dele não extrai um mandonismo iluminado, em que terminam os carismáticos, suprindo cada vez mais o aconchego do outro, e assumindo ou prejulgando o que queira, na palavra do predestinado.


Lula é o contador de histórias, nas imagens e conclusões de uma didática da concordância expressa sem o arreganho nem a coreografia da possessão cívica. Entendeu-se com Bush, que o agarrou pela lapela, para além de protocolos e espertezas, olho no olho e mano a mano, na conversa que se aceita ou se nega, mas não se subentende, nem cala. Nem se arroga o governante, pela delegação da confiança, chegada à irracionalidade transfigurada.


Não há brilho de enviado nos olhos de Lula, de apaziguador de massas ou senhor de seus silêncios. Fala e repete, ri, dá tapas, abraça, graceja. Nada na manga ou deixado aos subentendidos, ou às refrigerações de gabinete. Sobretudo o que esses seis meses nos ensinam, depois da boda dos 100 dias é que não há metamorfose no presidente, nem saída da conversa, em que se instalou na fabrica muito antes do que nos palanques. É o que lhe dá o segredo, hoje, do saber como ajustou com o seu povo - e só com ele - a contagem regressiva do que prometa, entendendo porque se espera. Sem pressa, nem carisma.


 


O Globo (RJ) 16/7/2003