A instalação da Cadeira Celso Furtado em Paris, em cooperação entre o Fórum de Reitores do Rio de Janeiro e o Collège de France, permitiu um amplo debate sobre a presente visão no exterior do governo petista, em meio de mandato. Difícil perspectiva mais rica, do que a do cenário da Sorbonne, envolvendo esta massa de estudantes e pesquisadores de todo o mundo, debruçado sobre o que representa - nas antigas periferias - o crescimento do recado de Lula. Não se trata apenas do reconhecimento inédito deste governo que, entrando no seu segundo tempo, mantém essa popularidade inédita de 68% de apoio, e ainda em expansão. Nem da certeza real com que está plantado o chão de estabilidade, para que se adense a proposta, vencido o radicalismo utópico, tanto a alternativa ao mundo neoliberal envolve uma prática, de toda hora para que vingue, sem retórica, e a duras penas, uma esquerda em processo.
Ao lado do sucesso econômico, aí está a verificação, lá fora, do fortalecimento político de Lula, aglutinando em torno do PT os primeiros aliados de circunstância, e agora quebrando, de vez, toda restauração da lógica dos antigos partidaços, o PMDB e o PFL, herdeiros sempre, afinal, da crise dos reformismos e da volta do alento de mudança ao Brasil de sempre. O PMDB, afinal, rachou-se, sem retorno, ao aceitar a entrada no governo e, agora, a repetir a negaça de sempre de usufruir do palácio para depois, reforçadas as suas bases, confrontá-lo às vésperas de nova eleição. Será praticamente impossível que a velha legenda do Dr. Ulysses se reúna em toda sua força nacional, diante dessa quebra ao meio, que encruará no Ministério até ao fim do governo, segmento sem volta da aliança com Lula, frente ao grupo que quis agora, à última hora possível, desembarcar do sistema. Aí estão, em meio do mandato estas maiorias a formar novo amálgama em torno do PT, para o voto de projetos críticos, a dar a cara para o segundo tempo de Lula. Das cotas aos desmunidos na universidade, aos projetos de parceria pública e privada, que asseguram, ao mesmo tempo, um sentido empresarial à operação da atividade estatal e mantêm no campo da regulação a lucratividade desordenada da economia privada. Os caminhos de Lula não correspondem ao figurino prévio, mas o empenho de transformação social verruma a esperança, até por anticlímaxes temperados, que decepcionam as intelligentsias, mas mantêm um laço à toda prova com essa experiência virgem de fé no homem do Planalto pelo Brasil do outro lado, e agora com o aplauso do país de salão.
Lá fora o destaque brasileiro encontrou de logo a melhor acolhida inicial, numa década especialmente desguarnecida de novas lideranças, a esperar alguém após Mandela. Lula pôde, de saída, apontar uma liderança tricontinental, saindo do quadro surrado da América Latina e de logo acenando, nos primeiros meses de mandado, a aliança com Pretória e Nova Delhi. Seus resultados se manifestaram na contraposição à Alca, ou nas primeiras vitórias contra as cláusulas discriminatórias das periferias na OMC.
O ano que ora se exaure só fez repetir este cansaço continental, de associação após associação, reciclando as frustrações do Mercosul e da Faixa Andina, em encontros quase deixados à flauta retórica, como a da última conclamação de Cuzco. O mal à vontade entre os vizinhos se acirra com esta estranheza argentina, de um Kirchner renitente. Não se sabe se recolhido ao último tango do impasse portenho, ou à retomada da confrontação compulsiva com Brasília. É o que amplia o desembaraço internacional de Lula nessas novas formulações de uma presença brasileira, saída da toca do Prata ou dos Andes, no momento em que se reforça a visão hegemônica, respaldada pelos 59 milhões de votos dados a Bush. Só compete com os 52 de nosso presidente, ambos a ganhar uma inequívoca legitimidade nos seus respectivos grand designs.
O primeiro momento da aliança África do Sul-Índia-Brasília perdeu o seu arranque. Mas, para nós, a este trampolim se retorna pela iniciativa inédita, do 10 de maio próximo, da primeira reunião global dos países árabes em Brasília. É como se uma fala do Islão atravessasse o Atlântico e ganhasse, aqui, o teatro de uma presença internacional, que abra um legítimo diálogo das culturas, sua voz, sua diferença e sua crítica, antes de que as guerras preemptivas nos deixem, de vez, diante da ''civilização do medo'', como segunda natureza da dita prosperidade global. É um Brasil que já venceu as areias movediças do neoliberalismo que pode agora reunir parceiros novos e inéditos nesta conversação, em que, por uma vez, a tirania das geopolíticas se rompe pela verdadeira realpolitik de um mundo das diferenças. O país, a meio Lula, já vai, lá fora, para além da Taprobana.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 29/12/2004