Nem tão de repente, Lula sofreu uma primeira vaia pública na terra de Collor. Descartou-a com o luxo de quem sabe que não é neste chão das Alagoas que se daria partida à irrupção, já pertinaz, de um dissenso efetivo à Presidência. Mas na tranqüilidade de sua reação, mostrou o quanto avançamos a todo pano na democracia profunda, que veio ao poder com o advento do partido diferente. Não estamos mais no perde-ganha imediato dos sucessos ou dos choques dos governos de elite de poder, seu prestígio, sua decadência. Entra em campo, sim, o esforço por este regime consensual de liberdades que começa por trazer o contraditório ao seio do poder; convive com facções contrárias - e estridentes - no seu bojo; mantém o confronto até que, à sua exaustão, se decante a força da decisão de governo de fato compartilhada.
O Brasil mal começa a enfrentar o assembleísmo interminável das reuniões petistas, das audiências populares do Congresso. É processo lento e exasperante mas que, exatamente, assegura a vontade de transformação do país, o teste de suas rejeições e o delineio do passo possível, frente à extraordinária inovação de acolher o Executivo o dissenso, trazendo-o aos últimos escalões do Planalto. Nenhuma voz mais contundente que a do próprio vice-presidente, desde os primeiros dias da posse, a condenar a política de juros altos, esteio mesmo do modelo liberal da política financeira, de onde partiu a convivência do governo Lula com a conjuntura internacional, irreversível, que hoje enfrenta.
Só se tem ampliado a contundência de José de Alencar, com o alerta permanente para a guinada contida na promessa a largo prazo do governo. Tanto mais a reitera, o repertório da demanda, no governo, pelo outro Brasil, tanto a sinalização da alternativa só se fortalece, neste segundo tempo do primeiro mandato presidencial. Na mesma linha se encontra o aviso de Lessa, na sua necessária contundência, à frente do BNDES, como órgão chave para nossas dimensões sociais da mudança e da fuga à fatalidade do modelo liberal, herdado pelo Planalto. Neste enfoque, aliás, é que o compromisso de transformação nacional se pode produzir, no tempo profundo, a que se vincula, no seu próprio inconsciente político, o eleitorado básico e constitutivo de Lula. Mas trata-se de empreitada a só se consolidar no segundo mandato presidencial. É quando - e já manifestado, por exemplo, pelo ministro Berzoini - a reforma ampla da legislação do trabalho ganha impulso, tal como a do estatuto político, e a necessária complementação do regime tributário, deixado no seu vestíbulo.
Lessa foi o guardião efetivo do tempo longo da nossa efetiva mudança, que não tem no desenvolvimentismo uma memória fóssil, mas o rumo do ganho da autodeterminação nacional, da volta ao mercado interno, prioritário para a política de emprego, e maximização das verdadeiras oportunidades de mercado. Enquanto presidente do BNDES soube do seu papel, até quando vociferou no recado para além da administração Palocci. As diretrizes do Banco Central cumprem o seu papel, tanto quanto sabem do seu cronômetro e do momento pendular, largo, da viabilidade petista, buscando mais que os sucessos sempre do instante, da moldura internacional em que nos inserimos.
Carlos Lessa não é só o companheiro de José de Alencar na caução de futuro do regime. Desde logo se lhe deveu o começo efetivo de ruptura com o estrito status quo liberal, pelo novo trato emprestado às privatizações do país. Seu lance não demorou em pôr cobro às presunções de transigência no começo da liquidação dos débitos do sistema AES, na exploração da eletricidade paulista. Cobrou os atrasos capazes de ficar ao deus-dará das prorrogações, da falta de retorno desses dinheiros que vinham da poupança compulsória do trabalhador, emprestada à empresa estrangeira.
O BNDES de Lessa mostrou a nova diretriz de Estado, ciosa de seus poderes e do rigor de trato dessas operações fiadas, de saída, na tolerância com a inadimplência crescente, características das economias do conformismo à liberalização sem retorno. E aí estão, por outro lado, os primeiros empenhos efetivos de presença dos estratos médios do empresariado brasileiro nas aberturas de crédito, buscando outros padrões de produtividade e de eficácia, fora das regras soltas do neoliberalismo e seu mercado imediato.
Teimoso, discrepante, vocal, Lessa, no topo do BNDES, teve papel crítico nesta visão - e esta, sim, abrangente - em que uma economia como a brasileira se cumpra no que está aí, efetivamente, como transição e não como o pacote fechado de um modelo prévio, que extrema os seus jogos feitos fora de todo potencial de recursos do FAT - Fundo de Assistência do Trabalhador - ainda a salvo da investida da área bancária privada, de garantir o mercado financeiro homogêneo. O sinal de Lessa é exatamente o do outro caminho, de conservar o empréstimo barato à agricultura e à habitação, num diferencial de juros que não pode submergir. E não é outra a grita liberal que imputa ao BNDES à exceção dos juros baixos que obriga o aumento compensatório dos spreads reclamados pela gula do mercado de todo sempre.
E esse mesmo BNDES que, no melhor desenvolvimentismo, aparelha uma indústria de base, como a naval, no Rio de Janeiro, respondendo pela recuperação do perfil pesado de nosso emprego, ao lado dos automóveis de Porto Real e da explosão das plataformas oceânicas de Campos. Lessa tem o seu papel no avançar, de fato, o projeto petista. Por ele, vencemos todo o risco de que o país do projeto transformador apequene, ou feche o seu script. Ou feneça por um novo pensamento único em que se aposenta o Brasil do outro lado. Este que tem Lula e Lessa à frente de seu rumo.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) 19/11/2004