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Kerry entre a alternativa e a hegemonia

 

Na campanha eleitoral americana, pela primeira vez, em fins de agosto, as pesquisas mostram Kerry à frente de Bush, no que era, ainda, o seu bastião de fiabilidade eleitoral. O democrata, numa opção de 47 contra 46%, é o comandante-e-chefe que passam a preferir os americanos, para o conflito continuado com o Al-Qaeda e o desfecho decisivo na guerra do Iraque. O mais importante é que esta mudança está associada a uma convicção ainda mais contundente quanto ao futuro do país. A invasão de Bagdá e a derrubada de Saddam não tornaram os Estados Unidos mais seguro, pensam 52% da população contra só 38%, a apoiar o propósito bélico de Bush.

Ao mesmo tempo, a opinião pública americana repudia a tentativa de um grupo de militares da extrema direita, financiada por milionário texano, de contestar o heroísmo de Kerry durante o conflito do Vietnam. O tiro saiu pela culatra, levando um dos maiores baluartes republicanos, John Mcaint a denunciar a manobra. E o próprio Bush a reforçar o respeito ao senador de Massachusetts, confirmando a página de herói que escreveu no conflito asiático.


De toda forma parece claro que a campanha ganhou o tônus do passado guerreiro do candidato, e justamente como eco da imagem poderosa deixada pela convenção de Boston. E as convicções de um lado e de outro parecem superar a carga de libelos, tal como avançado, por exemplo, pelo Fahrenheit-9-11 de Michael Moore, ou de sua nêmesis republicana, na violência do ataque conservador, do radialista Rush Linbaugh.


Menos de 8% da população americana assistiu o filme libelo, ganhador de Cannes, e fica nesta porcentagem também a dos que ouvem o demolidor pró Bush. Permanece também, sobretudo, o arranco de Kerry superando o entendimento de que a convenção de Boston fosse fogo de palha. Ao contrário, a reunião monstro mostrou, a corpo inteiro, o antagonista de Bush, sessentão tranqüilo, de Yale e da infância rica na Europa. Mas a campanha eleitoral só confirmará dois caminhos para uma mesma determinação hegemônica dos Estados Unidos, no mundo de depois do 11 de setembro.


Kerry não deixa dúvida que a decisão pela segurança americana será sempre unilateral, dependendo do que pense exclusivamente o país, à margem de qualquer concerto ou imperativo de uma ordem mundial. É a primeira vez que esta instituição esplêndida americana, misto de festa e explosão cívica, reúne-se após a queda das Torres. A nova presidência não voltará jamais ao clima de antes, mas deixa claro que prefere a melhor deterrência - desanimando o adversário pelo poder de fogo que evidencia, a preempção, de Bush, que passa à guerra logo para destruir o adversário.


Os Estados Unidos republicano e democrata espelham hoje um país decisivamente rachado, pois que tomado pelo medo, e no como enfrentá-lo, após o ataque da Al-Qaeda. A dificuldade maior ainda de Kerry, frente à reeleição do adversário é mostrar que pode também ser comandante-em-chefe, ao lado das tarefas civis da Casa Branca. Por aí mesmo irradiou a imagem do herói da guerra do Vietnã - purple hearts no peito e ação decisiva no comando da corveta, sob o bombardeio do inimigo. Ao seu lado, na apoteose de Boston, figuravam os companheiros estropiados, e dizendo da crueza do combate como da coragem do seu chefe, o único candidato à Presidência nessas últimas décadas que compartilhou com Kennedy a ferida em batalha. Contrasta com os demais que nunca foram à guerra, ou mesmo, como Bush, ficaram por meses simbólicos, detrás das gavetas da Guarda Nacional, no Texas.


A diferença entre as futuras escolhas não está apenas no intento de buscar a paz agora no pós-Iraque. Kerry protagonizou-o pela fileira impressionante de militares à paisana no palco da festa, rematados pela presença de Wesley Clark, o rival de há poucos meses na conquista da investidura democrata. O melhor exército é o que não se antecipa ao combate, mas arma-se até os dentes para assegurar a força tranqüila no desânimo do adversário. Ao contrário de Bush, Kerry declarou que não iria à guerra no caso do Iraque antes da efetiva comprovação da posse, por Saddam, dos engenhos de destruição de massa. Não o fez o Presidente. Assumiu a mentira, para lançar a luta contra o "eixo do mal", que associou a visão das cruzadas dos radcons - os radicais conservadores - somando a empreitada, da remodelização do país vencido.


Na comoção da queda das Torres e em resposta inevitável votou o Congresso por unanimidade o Patriot Act, que assegurou bilhões de dólares às Forças Armadas, sua logística e às tentativas de reconstrução maciça do país vencido, de acordo com os padrões hegemônicos a que obedeceriam as firmas contratadas, sem concorrência no estrépito do abalo nacional. Teve a lei, como grande beneficiário, o complexo Halliburton- Kellog-Brown. Era seu Presidente Dick Cheney, até que se desencompatibilizasse para dividir, com Bush, a última candidatura republicana vencedora à Casa Branca.


O presidente repetiu no seu famoso discurso de West Point, em 2002 em que se preparava para uma guerra de duração indefinida, inseparável, pois, da incorporação do conflito à própria normalidade da economia americana. Não falou de paz, que é a palavra chave da campanha de Kerry, dando as costas aos bons negócios previsíveis ao país que Bush desenhou para os multimilionários, e a desaparição dos dinheiros públicos para o serviço de saúde e aposentadoria, ainda agora, de 44 milhões de americanos.


Um terço dos Estados Unidos não conhecia Kerry como menos desses 30% não se preocupam com o Iraque, nesse país basicamente interiorano, voltado sobre si mesmo, a que fala muito mais o semblante de querubim capiau, de John Edwards, companheiro de chapa. Mas ao seu lado a mulher, Elizabeth, ao lado de Teresa, com certeza, e Hillary, formam um trio de nova fortaleza feminina tão distante do doce panteão da bobagem consumista. Se Bush não hesita em trazer à prosperidade hegemônica os contínuos juros do medo, os Estados Unidos de Kerry divisam uma opulência americana que não quer ser gêmea de uma civilização do terror. Mas de toda forma, o desejo de estabilidade e de possível saída do Iraque proposta pelo democrata, não quer iludir os americanos quanto a qualquer retorno ingênuo à paz. E Kerry não tem ilusões quanto ao combate e às estratégias do confronto com o terrorismo. Bush instalou, ao lado do War Room, ou do Salão de Guerra na Casa Branca, o Departamento Nacional da Segurança Cibernética. Este, Kerry não desmontará mais.




Jornal do Commercio (RJ) 27/8/2004